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A Copa e o coração

Por Matthew Shirts
Atualizado em 5 dez 2016, 17h18 - Publicado em 24 mar 2012, 00h50

Na primeira vez em que acordei da anestesia geral no Hospital Sírio-Libanês fiz um papelão. Foi em 2002. Ao recobrar a consciência, percebi que diversas pessoas de branco riam sem controle em volta da minha cama. Havia mulheres e homens. Alguns se dobravam de tanto gargalhar. Ocorreu-me a possibilidade de ter morrido e ido para o céu. Notei que vestuário branco devia ser “de rigueur” e que os companheiros davam risada à toa. Bom lugar, ponderei.

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Minha mulher, Luli, foi trazida de fora do quarto para o lado da cama, confirmando que eu estava vivo. Perguntei o motivo de tamanha diversão, ainda grogue. Ela explicou que era eu mesmo. Ao acordar, conta até hoje, com gosto, diga-se, teria eu feito repetidas declarações de amor, não a ela, pelo menos não a princípio, mas ao então técnico do Corinthians, Carlos Alberto Parreira, que havia sido e voltaria a ser treinador da seleção brasileira. Repetia eu, sem parar, de acordo com a versão da minha esposa, “Eu amo Parreira”, para o deleite dos médicos e enfermeiros presentes. Por vezes, emendava com a frase “Esse time só me dá alegria”. Virei uma sensação ali no 5º andar do Sírio-Libanês, como você pode imaginar. Tudo isso em português, graças ao nosso bom Deus, com o meu sotaque do eixo Tatuí-Sorocaba. “I love Parreira”, em inglês, teria sido ainda mais ridículo, suspeito.

Os médicos ali no quarto chegaram à conclusão de que o meu coração, que tinham acabado de consertar, era brasileiro e corintiano. Mesmo instigado por eles, e sobretudo por enfermeiras preocupadas, a elogiar a presença de Luli ao lado da cama, eu insistia: “Amo minha mulher”, dizia, “mas Parreira é o cara”. Como você pode imaginar, essa história ainda rende bons frutos lá em casa.

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Sou Parreira desde 1994, o ano da sua primeira Copa como treinador do Brasil e da minha como cronista, então no jornal “O Estado de S. Paulo”. Diferentemente de quase todos os jornalistas brasileiros presentes ao evento, que ocorreu nos Estados Unidos, eu apoiava as decisões do nosso técnico. Entendia a necessidade de jogar com cautela após uma seca de 24 anos sem ganhar uma Copa do Mundo. O ânimo do país beirava a histeria antes da Copa. Entre 1958 e 1970, a seleção canarinho levou três em quatro Copas e aposentou a Taça Jules Rimet. Revelou Pelé e Garrincha. Os europeus mudaram até o estilo de jogar, como consequência. Veio, então, o longo e tenebroso inverno futebolístico brasileiro. Mesmo times geniais, como o de Telê Santana, de 1982, foram incapazes de quebrar o jejum. Em 1986, Zico e Sócrates perderam pênaltis e o time foi desclassificado. Da seleção de 1990 não se fala.

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Em 1994, era preciso tomar providências. Eu admirava a autoconfiança e a determinação de Parreira naquela Copa. Escalou o time sem ouvir os conselhos dos comentaristas, do Pelé, do então presidente, Itamar Franco, e da própria mãe, que pediam o Ronaldo, na época com 17 anos. O Brasil levou a taça, nos pênaltis, na Califórnia, após um interminável zero a zero contra a Itália. Eu estava no estádio. Abriu-se um novo período no futebol brasileiro, mais tranquilo, sem tanta histeria.

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Foi essa a lembrança que me veio à cabeça, ainda anestesiado, no Sírio-Libanês, dez anos atrás. De lá para cá o futebol mudou muito e o país também.

Pensei nisso ao acordar da anestesia geral pela segunda vez, no mesmo hospital, há duas semanas. Ali mesmo, perto da Rua Barata Ribeiro e do Bexiga. Está tudo bem. Não se preocupe comigo. Consegui evitar maiores vexames desta feita. O doutor José Eugênio, meu cardiologista desde sempre, deixou meu coração ainda mais brasileiro. Disse ele que não quer correr riscos. Afinal, daqui a pouco começa mais uma Copa do Mundo. Já estou preparado para emoções fortes.

E-mail: matthew@abril.com.br

 

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