A cidade que não desliga: um panorama do uso do celular em São Paulo
Explosão de telinhas marca mudanças na rotina da metrópole, esquenta negócios e pode afetar a saúde de quem exagera
É noite de calor no Itaim Bibi e a advogada Fernanda Santos, de 24 anos, que durante o dia trocou “mais de uma centena” de emails, “uma dezena” de torpedos e ainda falou “um pouquinho” no Twitter, acaba de registrar no Facebook, com seu iPhone: a amiga Luana estava tomando um chope ao seu lado, no Boteco São Bento. A casa, que já está lotada às 9 da noite, numa quarta-feira, ganha a decoração involuntária de dezenas de telinhas acesas ao longo das mesas, ocupadas por grupos que aproveitam sua vida social, mas mantêm a digital ao alcance dos dedos. Alguns quilômetros adiante, na região dos Jardins, o chef Carlos Bertolazzi comanda o Zena Caffè desdobrando-se entre as panelas e o smartphone, pelo qual monitora o que a clientela está comentando sobre o restaurante. Os habitués sabem que postar nas redes sociais elogios à comida ou espalhar a bela foto de um prato fumegante pode render drinques ou sobremesas de cortesia. “É uma maneira de melhorar a relação e incentivar a divulgação”, diz Bertolazzi.
Mario Rodrigues
Amigas no Boteco São Bento, no Itaim: cada uma na sua
Enquanto isso, em algum outro bairro, a atriz Fernanda D’Umbra está também de olho em BlackBerrys, iPads, Androids e o que mais houver da parafernália. “Quero que esses aparelhos desapareçam”, brinca. Ela se refere aos dissabores que enfrenta ao ir ao teatro ou ao cinema e perceber sussurros do tipo “Não posso falar” ou a piscadinha de alguma luz de tela na plateia. “Fico irritadíssima, porque sei que quem está no palco percebe imediatamente qualquer tentativa de mexer no telefone.” Quando encenava a peça “Autobahn”, há alguns meses, no Espaço Parlapatões, chegou a flagrar um casal de espectadores navegando na internet, o que a desconcentrou imediatamente.
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Com situações semelhantes a essas, de diversão, de negócios e de explícita falta de educação, a cidade incorpora a cada dia o fenômeno mundial da superconexão. Na área coberta pelo código telefônico 11, há nada menos que 144 linhas de celular para cada 100 habitantes (um mesmo aparelho pode ter dois números, com chips de operadoras diferentes). A média nacional é de 118 por 100. Do montante paulistano, 15% operam com tecnologia 3G, padrão que permite maior troca de dados e é muito usado por smartphones.
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O fenômeno é percebido em cenas como as que o marronzinho Oslaim Brito, da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), acompanha todos os dias nas ruas. “Esses iPhones viraram uma praga, as pessoas não conseguem parar de teclar nem ao volante”, diz ele. “É comum socorrermos motorista após uma batida e encontrarmos o celular jogado no chão.” Não à toa, o número de multas para quem fala ao telefone ou digita enquanto conduz o carro quase dobrou: foi de 253.220 em 2007 para 473.153 em 2010. Neste ano, até outubro, ocorreram 379.014 autuações.
Mario Rodrigues
Motorista na Avenida Brasil: teclando ao volante
O uso quase descontrolado dos equipamentos é percebido em diversos ambientes. No salão de cabeleireiro, as clientes não param de teclar nem quando estão debaixo do secador. Em restaurantes, os garçons já se acostumaram com o silêncio entre as pessoas que dividem as mesas, pois todas estão concentradas nas próprias conversas na rede. Os professores das escolas penam para ensinar, enquanto a garotada não tira as mãos de seus telefones. A onda transforma gente como Marcelo Lopes, diretor executivo da Fundação Osesp, em fiscal de bons costumes tentando barrar os aloprados digitais. Na Sala São Paulo, ele orienta os funcionários a chamar discretamente a atenção de quem manuseia as engenhocas durante os concertos — por incrível que pareça, uma situação cada vez mais frequente. “Em todas as apresentações, são vários os que querem, por exemplo, tuitar sobre o que ouvem”, afirma Lopes. “Entendo a vontade de dividir a experiência, mas não custa esperar um pouco.”
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A ligação exagerada aos eletrônicos tem explicações psicológicas. Diversos estudos comparam a compulsão a eles à dependência de drogas. A cantora Luiza Possi conta que, em certa medida, o BlackBerry a ajudou a abandonar o hábito de fumar há dois anos. “Depois do almoço, em vez de pegar um cigarro, eu sacava o telefone”, diz ela. Ou seja, trocou um vício por outro. Nas pesquisas sobre os adictos cibernéticos, já se sabe que são diferentes os casos de pessoas que se isolam com seu computador ou videogame dentro de casa — frequentemente, cidadãos que tendem à depressão ou a transtornos bipolares — daqueles em que há perda do controle no uso de aparelhos portáteis, com predisposição para disparadas de ansiedade. A patologia não é mensurada pelo número de horas de conexão, mas pela ausência de autodomínio e pelo prejuízo à vida real.
Mario Rodrigues
Pedestres na Rua Oscar Freire: mundinho digital particular
O psicólogo Cristiano Nabuco de Abreu, coordenador do Grupo de Dependência em Internet do Instituto de Psiquiatria da USP, que existe há cinco anos, está acostumado a lidar com casos graves de adictos digitais. “Em um deles, um adolescente passou 45 horas seguidas em um jogo de computador, dispensando o banheiro e até sujando as calças, em busca de um recorde na aventura”, revela. Situações assim são tratadas com terapia de grupo no ambulatório (informações sobre inscrições estão no site https://www.dependenciadeinternet.com.br.).
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Já o Núcleo de Pesquisa da Psicologia em Informática (NPPI), da PUC-SP, usa outro método — a troca de e-mails entre especialistas e pacientes. “Percebemos que esse público dificilmente iria a um consultório para uma abordagem presencial”, explica a coordenadora Rosa Maria Farah. Em geral, o primeiro contato parte de pais preocupados com filhos ou de mulheres em relação ao marido. As orientações para se livrar do vício são feitas em até oito mensagens semanais. “Trabalhamos o autocontrole, porque a pessoa não precisa, e muitas vezes nem pode, ficar totalmente longe da rede”, ela diz. “É algo bem mais próximo de compulsões alimentares, em que o tratamento não é deixar de comer, do que de dependência do cigarro.”
Mario Rodrigues
Maria Rita Alexander, dona do P.J. Clarke’s: pesquisa diária de comentários sobre o restaurante
Essa disseminação digital, é claro, não trouxe apenas problemas. No mundo dos negócios, a cidade ainda aprende a lidar com as novas possibilidades. Poucos setores têm feito isso de forma tão animada como o da gastronomia. Brindes como os distribuídos pelo Zena Caffè são ferramenta poderosa para fidelizar frequentadores e fazer a fama de estabelecimentos no boca a boca. De tanto notar a clientela plugada à mesa, Maria Rita Alexander, dona do restaurante P.J. Clarke’s, decidiu pesquisar diariamente o que teclam sobre a casa. “Respondo a dúvidas e críticas tão logo quanto possível, para ficar tudo resolvido.” Garçons são orientados a abordar clientes que clicam cenas pouco fotogênicas, como um sanduíche já todo mordido, e sugerir que esperem o próximo prato para um retrato melhor.
Mario Rodrigues
Alunos do ensino fundamental do Objetivo: tablets no dia a dia
Na área de educação, a tecnologia vem sendo aos poucos incorporada ao dia a dia das escolas. Algumas redes de ensino, como Objetivo e Pueri Domus, já adotaram iPads ou similares na sala de aula. A novidade exigiu a criação de algumas regras. No curso de MBA executivo internacional da Fundação Instituto de Administração (FIA), no bairro do Butantã, está vetado atender ligações. “Mas permitimos que se chequem e-mails nos tablets que fornecemos para as aulas”, diz o coordenador James Wright. “Proibir totalmente seria irreal”, acrescenta ele, que lamenta apenas uma situação comum nos intervalos: muitos dos estudantes ficam pendurados nos próprios equipamentos, em vez de aproveitar a interação ao vivo com os colegas e fazer bons contatos. É nesse cenário que a atenção exclusiva em uma conversa, com os eletrônicos desligados, começa a se tornar item raro. Em treinamento recente comandado pela consultora Claudia Matarazzo para vendedores de carros de luxo, esse foi um dos principais pontos. “A empresa queria deixar claro que, quando quem faz a venda não atende nem o telefone fixo, o cliente se sente especialmente bem tratado”, conta. Na cidade que não desliga, o mínimo de silêncio virou um diferencial.
UM PROBLEMA DE TRÂNSITOO número de flagrados ao volante falando ao celular ou teclando quase dobrou entre 2007 e 2010
2007 — 253.2202008 — 373.4552009 — 456.6602010 — 473.153
METRÓPOLE CONECTADADados da área abrangida pelo DDD 11
1,44 é o número de linhas de celular por habitante
81,62%* das contas são pré-pagas
15% das linhas operam com tecnologia 3G
* Média paulista
DISPUTA CHIP A CHIPA participação das operadoras
Oi — 19%Claro — 21,3%Tim — 27,9%Vivo — 31,8%Fonte: Consultoria Telec