Em um dia de outubro, muitos anos atrás, 58 para ser exato, um homem sério, respeitável, já perto dos 60 anos, arquiteto e artista plástico de renome, caminhou pelas ruas centrais daquela São Paulo dos quatrocentões vestindo uma saia curta pregueada com dois machos na frente, camisa de mangas curtas, largas, em tecido meio transparente, e sandálias. Chocante. Ele, Flávio de Carvalho, propunha naquele outubro o que chamou de “new look para o verão” e “moda para o novo homem”, que po-dia ser complementada, se fosse o caso, com meias do tipo arrastão “para esconder varizes”. O tecido dispensava ferro de passar e podia ser lavado e seco da noite para o dia.
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A roupa não pegou, nem era a intenção. O artista queria provocar, questionar comportamentos, desentocar preconceitos. Às vezes uma pessoa se veste para isto: para “causar”. (É divertido o uso intransitivo desse verbo, tomara que continue na língua.)
Provocar era a verdadeira intenção de Fernando Gabeira ao voltar do exílio e vestir no verão de 1980 a sunguinha de crochê que nada mais era do que a parte de baixo do biquíni da prima Leda, e o verão foi chamado o da abertura, quando se abriram vários armários, menos os dos esqueletos da ditadura. Ele deu assim um olé na esquerda daqueles anos, que não esperava tal exposição de um companheiro da luta armada, como não esperava os livros que ele publicou em seguida, propondo, entre outras liberdades, uma política para o corpo tropical.
Teve o efeito de um comício o ato público em que a ativis-ta Luz del Fuego expôs sem pudor seus argumentos a favor da causa naturista ao se apresentar no baile de Carnaval do Theatro Municipal do Rio de Janeiro fantasiada de Eva no paraíso, trajando apenas uma jiboia. Em 1948! Antes de ser expulsa, posou para os fotógrafos e conseguiu multiplicar o efeito da sua provocação. Ela também, a seu modo, propunha em livros uma nova política para o corpo.
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Acusaram o compositor Heitor Villa-Lobos de misturar traje com ultraje por se apresentar de casaca e calçando um pé de chinelo no primeiro recital da Semana de Arte Moderna de São Paulo, no Teatro Municipal, em 1922. O público entendeu que aquilo fazia parte das provocações dos artistas que pretendiam demolir a arte acadêmica, e respondeu ao “insulto” com barulhenta vaia. Na verdade, Villa-Lobos sofria de um ataque de gota.
Pior combinação de traje com ultraje fez o deputado federal carioca Barreto Pinto, eleito em 1946, ao se deixar fotografar para a revista O Cruzeiro — autoproclamada a maior da América Latina — usando casaca, colete branco, gravata-borboleta branca e… cueca samba-canção, sem a calça. Indignados, seus colegas deputados, os primeiros depois da ditadura de Getúlio Vargas, cassaram o mandato dele por falta de decoro.
Nos anos 80 inventaram o flashing: alguém passava correndo pelado diante das câmeras em um evento sério, só para zoar. Foi breve, porque dava prisão.
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Relembro com um sorriso essas reações indignadas, coisa difícil de acontecer hoje. Estamos escolados, e quem quiser nos chocar vai ter de inventar algo mais prafrentex (gostaram da palavrinha que fui buscar lá nos anos 60 e que designava comportamentos avançados demais para a época?) do que um senador que dispara pelos corredores do Congresso vestindo um calção vermelho de Super-Homem por cima da calça, ou o visual espetaculoso da Parada Gay, ou um cartunista que resolveu se vestir habitualmente como mulher, ou os participantes seminus de reality shows da televisão aberta a todos os sofás, que se metem debaixo de edredons brancos em movimentos inequívocos, ou as bizarras danças pélvicas de moças em trajes sumários na mesma televisão…