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Análises mostram bactérias e drogas em dinheiro que circula na capital

Teste realizado em laboratórios da Unicamp indicou a presença de cocaína em todas as notas coletadas

Por Mauricio Xavier
Atualizado em 1 jun 2017, 16h46 - Publicado em 26 jun 2015, 19h51

Em seu cultuado romance A Revolta de Atlas, de 1957, a escritora russo-americana Ayn Rand dinamitou um célebre aforismo bíblico ao afirmar que dinheiro não é a raiz de todos os males. No que diz respeito ao caráter filosófico da produção de riqueza, a pensadora objetivista pode ter razão. Se a questão fosse os traços físicos do papel-moeda, porém, estaria redondamente enganada. Desde a sua introdução, na China imperial do século X, as cédulas são ímãs de porcarias. Circulando de mão em mão, reúnem microrganismos e substâncias que provocariam terror até em lixeiras públicas e aterros sanitários.

+ Ranking dos locais com notas mais sujas de cocaína, bactérias e fungos

Para avaliar o nível de problemas a que estamos expostos diariamente, VEJA SÃO PAULO coletou oitenta notas em quarenta estabelecimentos da capital, entre igrejas, escolas, parques, casas noturnas e restaurantes, e as levou para testes em laboratórios de química e biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Alguns resultados são surpreendentes e preocupantes. Cerca de 70% delas carregavam bactérias ou fungos em quantidade superior ao limite aceitável por critérios de higiene. E todas (sim, todas) apresentaram vestígios de contato com a cocaína.

Para analisar a presença de drogas, as cédulas foram submetidas a um moderno e caro equipamento chamado de espectrômetro de massa, cujo custo é superior a 1 milhão de reais. “Ele detecta as moléculas da substância em determinado ponto do papel”, explica o professor Marcos Eberlin, coordenador do Laboratório Thomson, do Instituto de Química da Unicamp. Altamente sensível, a engenhoca é capaz de acusar quantidades microscópicas de cocaína. Acima dos 2 000 quilocounts (unidade de medida usada nesse tipo de teste), a concentração é considerada alta e indica uma probabilidade maior de contato direto da nota com o tóxico. Cerca de metade das notas avaliadas ficou abaixo dessa taxa.

tabela dinheiro cocaina
tabela dinheiro cocaina ()
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“Provavelmente o pó estava preso na gordura do dedo de alguém e passou adiante junto com a impressão digital”, sugere a engenheira química Patricia Eloin Moreira, perita do Instituto de Criminalística de São Paulo. Em alguns estabelecimentos, no entanto, os níveis registrados foram até quarenta vezes maiores. “Nesse caso, a única explicação plausível é que a nota tenha sido usada como canudo para cheirar a cocaína”, completa Patricia. O campeão disparado do ranking foi uma casa noturna, o Royal Club, na Vila Olímpia. “Mesmo sabendo que há frequentadores de todo tipo, estou surpreso”, comenta Anderson Soares, gerente de marketing da balada. “Não aceitamos dinheiro deteriorado, mas infelizmente não há como controlar isso.”

Ambiente do Royal Club
Ambiente do Royal Club ()

Segundo os especialistas no assunto, a forma fácil de transferência da substância das mãos de uma pessoa para a nota e a quantidade de droga que circula por aqui (nos dois últimos anos, a polícia recolheu 6,5 toneladas de cocaína na capital; as apreensões de entorpecentes no estado cresceram 35% no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmoperíodo de 2014) explicam o resultado 100% positivo. “Um estudo realizado nos Estados Unidos revelou que os caixas eletrônicos dos bancos também funcionam como fonte de contaminação”, diz o professor Rodrigo Fernando Costa Marques, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Se a tinta de uma cédula tiver concentração alta do pó, ele pode ser passado para o restante do dinheiro armazenado na máquina.”

Padre José Roberto Pereira
Padre José Roberto Pereira ()
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Outros tipos de recipiente também serviriam de “mulas”. Alguns totalmente insuspeitos,como as duas caixinhas para depósito de doações no altar da Igreja da Consolação, no centro, local que registrou 3 000 quilocounts no teste. “Nós as abrimos toda semana e geralmente se juntam umas 200 notas, principalmente de 2 reais, várias delas bem sujas”, afirma o padre José Roberto Pereira. “Quando um funcionário está mexendo em dinheiro, até evito apertar sua mão, só dou um beijo na cabeça”, comenta o pároco.

tabela dinheiro bacterias
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Esse tipo de “tráfico” para lá de inusitado tem prazo de validade, pois a cocaína perde suas características ou é naturalmente ejetada do papel depois de um tempo. “Trata-se de uma substância volátil, pode evaporar em um mês e deixa de ter efeito em um ano”, afirma a perita criminal Patricia Eloin. Antes de isso ocorrer, praticamente não existe risco à saúde de quem conta suas economias. Por outro lado, há gravidade para o usuário que transforma os reais do bolso em canudinho na hora de aspirar a droga. “É um excelente meio de transmissão de hepatite C”, afirma o médico Caio Rosenthal, infectologista do Hospital do Servidor Público Estadual. “A cocaína irrita a mucosa do nariz e o vírus penetra pela ferida.”

Nosso dinheiro não é infestado somente por itens tipificados no Código Penal. Há também seres vivos, vários deles nocivos. Normalmente, bactérias e fungos apenas “hibernam” na nota, pois há poucos nutrientes em sua superfície. Quando transmitidos ao corpo humano, no entanto, voltam a se multiplicar. O teste no Laboratório de Biotecnologia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unicamp consistiu em coletar essas culturas e alimentá-las para descobrir a quantidade que havia originalmente no papel. A isso se dá o nome de unidade formadora de colônia (UFC). Com mais de 100, a sujeira está acima do limite. “O parâmetro é o mesmo utilizado para classificar a água potável”, explica o biólogo e professor Marcelo Lancellotti. Das quarenta cédulas analisadas, 70% apresentaram nível superior ao aceitável para bactérias ou fungos. “É impossível identificá-las visualmente: muitas têm aspecto perfeito”, completa Lancellotti.

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tabela dinheiro fungos
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Alguns dos locais que registraram maior índice de contaminação das notas foram o Templo de Salomão, no Brás, o empório gastronômico Eataly, no Itaim, a feira livre do Pacaembu, às terças-feiras, na Praça Charles Miller, e o parque infantil Kidzania, no Shopping Eldorado. Entre as principais bactérias encontradas estão estafilococos, causadores de alergias e infecções de pele como piodermite e furúnculo, e bacilos, que provocam problemas gastrointestinais como diarreia, vômito e intoxicação alimentar. “Quem come logo após segurar dinheiro está sujeito a tudo isso”, explica o médico Ralcyon Teixeira, supervisor do pronto-socorro do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. “Já os fungos podem produzir alergia, rinite e outras doenças respiratórias.”

Gerentes de loja e atendentes de caixa fazem parte dos grupos de risco. “De cada dez notas que eu recebo, pelo menos oito vêm sujas”, afirma o comerciário Ricardo Silva de Souza, da Mauro Bijouterias, na região da Rua 25 de Março. “Sempre que estou com uma ferida na mão, ela piora por causa desse contato diário.” A contaminação costuma ocorrer de forma bem prosaica. Na maioria das situações, os microrganismos são deixados nos maços por pessoas que não lavam as mãos depois de ir ao banheiro. É simples assim. “Para que fosse minimizada a possibilidade de contágio, espalhamos 54 frascos de álcool em gel pelo parque e obrigamos os funcionários da lanchonete a usar luvas”, afirma a diretora financeira do Kidzania, Miriam Uono.

Kidzania contaminação dinheiro
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O quadro torna-se mais crítico pela própria característica física da cédula, cuja porosidade faz dela uma esponja para todo tipo de imundície. Produzido em uma fábrica na cidade de Salto, a cerca de 100 quilômetros da capital, o papel usado como base da nota é composto de fibra de algodão, com textura mais firme e áspera que a do papel comum. Na Casa da Moeda, no Rio de Janeiro, ele passa por diferentes tipos de impressora, onde recebe elementos de segurança. Um deles é específico para as notas de 2 e 5 reais, as mais usuais. Trata-se de um verniz protetor que forma uma película de polímero sobre os dois lados da folha. Aplicado desde 2013, é transparente, imperceptível ao tato e não interfere no aspecto visual. Seu principal objetivo é dificultar a absorção de sujeira, aumentando a resistência e a durabilidade do material.

Estudos em outros países mostraram que a vida útil do dinheiro pode aumentar em até 70% com a proteção extra. Se a eficácia for repetida por aqui (ainda não há resultados divulgados), isso representará economia aos cofres públicos. Por ano, o Brasil gasta por volta de 400 milhões de reais para produzir 1,1 bilhão de notas. Ao mesmo tempo, retira mais 1,8 bilhão delas da praça, por estarem sem condições de uso. Para efeito de comparação, o total em circulação no país hoje é de 5,7 bilhões, com 30% distribuídos no Estado de São Paulo. Apesar de a fabricação de toda essa papelada ficar a cargo da Casa da Moeda, o gerenciamento do ciclo é responsabilidade do Banco Central.

Tabela composição dinheiro
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+ A composição do dinheiro e os tipos de droga e microorganismos

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Diferentes formatos de dinheiro são utilizados para a troca de mercadorias desde quase a invenção da escrita, há cerca de 5 000 anos, na Mesopotâmia. A maneira como ele é administrado e estocado, no entanto, mudou bastante durante esse tempo. No Brasil, por exemplo, o acesso da população às instituições financeiras é relativamente recente. Por isso, ainda há o costume de manter a grana por perto. “Até a década de 40, era comum que as pessoas guardassem as notas embaixo do colchão, no bolso do paletó, no armário, na geladeira, no fogão e até no açucareiro, pois os bancos eram associados a ricos e engravatados”, explica o consultor financeiro José Vignoli. “Os imigrantes que chegaram ao Brasil na primeira metade do século passado, fugindo de guerras e da crise na Europa, também tinham a tendência de armazenar suas economias em casa para a hipótese de surgir qualquer urgência.”

Nessa constante evolução, é certo que nossa intimidade com as cédulas está com os dias contados. De acordo com o mercado, estabelecimentos que trabalham só com cash perdem 15% de movimento em relação a concorrentes mais versáteis. “Dinheiro vivo é um animal em extinção”, afirma o presidente da Associação Comercial de São Paulo, Alencar Burti. “Vimos surgir o cheque e o cartão de crédito e, agora, as cédulas serão inevitavelmente substituídas pelo telefone”, conclui.

Com reportagem de Adriana Farias e Adriano Conter

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