Poucas coisas, nas metrópoles e em seus arredores, nos incomodam tanto quanto as pichações de casas, muros, portas, edifícios, orelhões.
Do lado oposto ao da nossa indignação, nasce a pergunta: como compreendê-las? As garatujas estão ali para nos dizer alguma coisa, seria a lógica, mas essa intenção fica encoberta pelo mistério da escrita e da dicção — e resulta algo esquizofrênico, no mínimo autista. Ficamos com esta coisa danificada diante dos olhos: um enunciado que não diz.
Que são esses sinais? Recados, criptogramas, trancas, assinaturas, revoltas, charadas, ameaças, desafios? A serem recados, perdem o sentido básico, pois nada comunicam, linguagem galáctica sem dicionário. Que são? Como se grupos de uma tribo estranha e bárbara penetrassem sorrateiramente nas cidades e deixassem o signo inquietante de sua presença. Ou como se anunciassem alguma nova, como fizeram os primeiros cristãos em Roma e Alexandria, sinalizando com o inicialmente incompreensível símbolo de um peixe o seu avanço pacífico, ou como fizeram mais recentemente os exércitos da exclusão, gravando suásticas, foices, martelos e siglas antecipandoalgo terrível e destruidor. Que querem dizer essas tribos bárbaras que nos rodeiam à noite, invisíveis?
Quantos são, na cidade, os pichadores? Cem, 500, a provocar 10 milhões? Buscam uma ponte? Entre o que e o quê?
É o risco que os atrai? É a adrenalina, vangloriam-se alguns, procurando equivalência com os que praticam esportes radicais ou rachas de automóveis ou se sentam no alto dos edifícios e viadutos com as pernas para fora. Houve uma época em que outros temerários faziam roleta-russa, não essa de cruzar esquinas em alta velocidade, mas outra, menos espetacular e mais suicida, revólver no ouvido, uma bala no tambor lotérico. É isso, o risco dos desafios imaturos que os leva a pichar a fachada do último andar dos prédios? É o jeito de se mostrarem machos, galos, leões? — ou macacos batendo na caixa do peito o tum-tum da vitória?
São protestos, alegam outros. Contra o quê, se não há palavras inteligíveis? Contra o silêncio da parede branca? Contra a calma dos olhares? Contra a coerência da fala? Se são protestos, a dicção caótica os aproxima das mais ou menos recentes manifestações de rua: o quê, o como e o porquê somem no tumulto de quebrar, não nos alcançam, só despertam o pior em nós: que se danem.
São marcas, também dizem. Afirmação. Querem ver reconhecidos o seu estar no mundo e o seu ser no mundo. Mas como, se anônimos e invisíveis? Como reconheceremos sombras, fantasmas? Comunicam-se na verdade uns com os outros, não conosco, os agredidos. Deixam marcas de conquista para que os rivais reconheçam que eles chegaram antes, como as marcas de urina com que as feras delimitam seu território no mato. E nós com isso? Dão-se ares, se acham, pretendem-se alpinistas a fincar sua bandeira nos caminhos íngremes. Galos cantando em terreiro sem raposas.
Na época em que as pichações queriam dizer algumacoisa, apareciam nas paredes “Paz e amor” e seu símbolo hippie, às vezes só o símbolo, sem as palavras. Um dia picharam meu muro: “Bom dia, gatão”. Pichavam com humor: “Rendam-se, terráqueos!” e “Liberte o gay que existe em vossa senhoria”. Valia um sorriso. A revolta contaminou os muros e apareceram “Abaixo a ditadura!”, “Fora ianques!”, “Morte aos comunistas!” e siglas armadas, VPR, ALN, CCC, MR8.
Os muros nunca mais tiveram paz e amor.
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