Número recorde de alunos trocam escolas particulares pelas públicas
Com a crise financeira, capital registrou um aumento na taxa de inadimplência da rede particular
Em 17 de fevereiro, Stella Camargo, de 10 anos, chegou ansiosa ao primeiro dia de aula do 5º ano do ensino fundamental da Blanca Zwicker Simões, no Tatuapé. “Senti um frio na barriga, não sabia se ia me adaptar”, recorda. “Quando entrei na classe, contei uns trinta colegas, bem mais gente do que no local onde eu estudava antes.” Sua irmã Rafaela, 12, também teve uma experiência parecida no início deste ano. Ela é uma das novatas do 8° ano do João Borges, outro colégio estadual localizado no mesmo bairro da Zona Leste.
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Ambas deixaram escolas particulares em Embu das Artes depois que a família se mudou do município para a capital em busca de uma solução para seus problemas financeiros. Passado o impacto inicial, Stella afirma estar gostando das novas colegas. Rafaela, no entanto, ainda tem queixas. “Sua reclamação é não ter muita lição de casa”, diz a mãe das meninas, Viviane Sanches, que começou a trabalhar em uma loja de decoração e artigos para bebês.
Divorciada do pai das garotas, ela tomou a decisão após ver o faturamento de até 8 000 reais de sua empresa de prestação de serviços de vendas cair pela metade. “Eu não dava mais conta de pagar os quase 1 000 reais de mensalidade, fora o material escolar e todas as outras despesas”, afirma. “Foi aí que chamei as duas para conversar e expliquei que elas teriam uma experiência diferente.”
A exemplo das irmãs de Embu das Artes, muitos estudantes estão passando pela mesma situação. Em 2016, o total de transferências das instituições particulares para as da rede estadual na cidade foi de 21 891 alunos, o maior número registrado nos últimos seis anos pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.
Desde 2011, esse tipo de migração aumentou 22%. O volume ainda é pequeno perto do universo de 1 milhão de matriculados no sistema, mas seu crescimento tem chamado a atenção dos especialistas. “Com a crise econômica, muitas famílias, principalmente da classe C, precisam cortar despesas. Nesse contexto, o ensino pago acaba sendo sacrificado”, afirma Anna Helena Altenfelder, superintendente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
No universo dos colégios particulares, a inadimplência vem se tornando maior. Em fevereiro, a taxa de atrasos na quitação das mensalidades chegou a 12,8%, contra os 8,4% registrados no mesmo período de 2015. Segundo a direção do Pentágono, com três unidades por aqui, um total de 360 alunos (pouco mais de 10% dos matriculados) deixou a instituição no ano passado, sobretudo por problemas financeiros de seus pais. “Não conseguimos repor tudo, e sobraram trinta vagas”, afirma Bruno Belliboni, diretor administrativo da rede, cuja mensalidade pode chegar até a 3 400 reais. “Na nossa unidade em Alphaville, por exemplo, notamos sobretudo uma ‘volta para casa’ dos filhos de executivos estrangeiros devido à situação do país.”
No Palmares, tradicional colégio de Pinheiros, de um ano para cá, houve aumento no pedido de desconto na mensalidade: aproximadamente 150 famílias recorreram ao expediente, quase o dobro do volume habitual. Nos casos aceitos pela direção, ocorreram abatimentos de até 15%. Por lá, os boletos enviados à casa dos alunos podem alcançar 3 838 reais no ensino médio. “Há famílias desfazendo-se de apartamentos para quitar dívidas. Nesses casos, negociamos um congelamento dos vencimentos até a venda do bem”, conta Alex Silva, diretor financeiro do Palmares.
Alguns estabelecimentos não suportam a situação. O Colégio Bilac, no Jabaquara, fechou as portas em fevereiro, depois de 74 anos de atividade. “Em 2015, muitos pais só pagaram a matrícula, e ficaram devendo o resto”, lamenta o diretor José Rubens Bueno de Abreu, que calcula que a dívida seja de cerca de 185 000 reais. Além do problema do calote, o local vinha sofrendo com a evasão de estudantes.
Nos últimos tempos, das 1 000 vagas, apenas 250 estavam preenchidas. Para evitar casos semelhantes, o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino no Estado de São Paulo (Sieeesp) passou a aconselhar seus 3 000 associados a redobrar a vigilância sobre as contas atrasadas. “Estamos orientando os estabelecimentos a fazer cobranças mais exaustivas, ligar, mandar carta e até ajuizar ações na Justiça nos casos mais graves”, afirma o presidente Benjamin Ribeiro da Silva.
Na visão da maioria dos pais, arcar com uma mensalidade é o sacrifício necessário para garantir um futuro melhor aos filhos. Uma pesquisa de 2013 feita pelo Instituto Nacional de Vendas e Trade Marketing (Invent) quantificou o peso desse gasto ao longo da vida. De acordo com o levantamento, uma família de classe C (com renda de 2 000 a 5 999 reais) desembolsa, nos primeiros 23 anos de um filho, mais de 400 000 reais para custear despesas com educação, lazer, saúde e vestuário. Quase a metade desse total está relacionada aos estudos. No momento atual de crise econômica, essa conta não cabe mais no orçamento de muitas famílias e a rede pública acaba virando a opção forçada.
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Com cinquenta anos de atividade, a Blanca Zwicker Simões é a escola que, na capital, possui a maior quantidade de alunos vindos da rede privada: 129 dos seus 912 estudantes, segundo a Secretaria da Educação estadual. Esse número só não é maior por limitação de espaço. Em 2016, ela recebeu 339 pedidos de matrícula, dos quais 67% eram de ex-alunos de instituições particulares. “Só pudemos aceitar 56%”, diz a diretora Solange Soares Ribeiro. “Teve até chororô de mães que não conseguiram vaga.”
Boa parte da procura é decorrência de indicação de escolas da região. “Neste ano, cerca de 40% do nosso público não ia conseguir manter seus filhos na rede privada e, por isso, orientamos que fossem até a Blanca, que virou referência de qualidade na área”, conta a diretora Paula Ariane, da escola Aquarela, também localizada no Tatuapé (lá, a mensalidade vai de 770 a 1 500 reais). Segundo o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2013, o mais recente da série, a Blanca recebeu nota 7,3, ficando acima da meta, de 7, fixada pelo governo.
Entre algumas atividades que os alunos desenvolvem por lá estão a confecção de brinquedos aliada ao ensino de gêneros de texto e até a criação de receitas, contos e cantigas para a produção final de um livro. Um dos calouros da Blanca, Fernando Henrique, 7, que, desde os 11 meses, frequentava a rede privada, precisou de auxílio na adaptação, devido à ansiedade.
No fim do mês passado, ele começou a fazer terapia duas vezes por semana para administrar melhor a mudança. “Ele ainda estranha coisas como a proibição de levar o tablet e brinquedos para o colégio, e, em alguns dias, acorda dizendo que não quer ir para a aula”, conta o pai do menino, o vendedor Faberson Lancioni, que recentemente perdeu o emprego que tinha em uma empresa de alimentos. Apesar das dificuldades, Lancioni vê um lado bom na situação. “Na escola particular, Fernando vivia numa redoma, muito protegido”, relata. “Agora, está vendo a realidade, aprendendo a valorizar as coisas, e que nem sempre pode ter tudo”, completa.
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A rede pública de educação já teve seus tempos áureos na cidade. Por volta dos anos 60, era referência de ensino de qualidade e excelência. Um aluno que frequentasse instituições como a centenária Escola Estadual Caetano de Campos tinha grandes chances de ingressar em uma universidade de renome da capital. “Ao longo do tempo, no entanto, a expansão do sistema não se fez com todas as condições necessárias, como qualificação e valorização dos professores”, explica Ocimar Alavarse, professor da Faculdade de Educação da USP. “Com isso, a qualidade acabou caindo.”
O recente movimento de transferência de estudantes da rede particular para a pública pode promover uma situação benéfica, ajudando na recuperação do nível de educação. “Esses pais acostumados a um padrão mais alto de ensino cobram mais qualidade e uma boa estrutura das escolas, e seus filhos promovem uma diversidade de experiências, com a troca de repertório cultural e social”, diz Quézia Bombonatto, conselheira da Associação Brasileira de Psicopedagogia.
Um bom exemplo disso é o caso de Amanda dos Santos, 15, que deixou, em 2015, o colégio particular Marco Polo e se mudou para a escola estadual Major Arcy, também na Vila Mariana. Tempos depois de chegar à nova classe, ela montou um grupo de estudo para ajudar amigas com dificuldade em matemática. “Vi que elas tiravam nota baixa, faltavam muito e não se interessavam, aí resolvi mudar essa história”, conta.
Diego Jimenez, 15, outro aluno da Arcy vindo do Colégio Santo Agostinho, é craque em temas como astronomia, mas enturmou-se no pedaço ensinando técnicas de skate nos encontros semanais da escola chamados de “clubes juvenis”. “As conversas aqui são mais da vida cotidiana mesmo, como sobre um filme que acabou de sair no cinema”, descreve o garoto. “No outro colégio, eu voltava de um feriado prolongado e o papo era a viagem que um colega tinha feito para os Estados Unidos.”
Colaborou Bárbara Öberg