As colinas de Perdizes passaram a ser perturbadas por moradores de rua, por lesados, vadios, chapados, pedintes, donos de vagas, achacadores de motoristas, traficantes, universitários sem noção. Uns inúteis a atrapalhar a vida dos moradores, crianças, velhinhas acompanhadas de filhas ou profissionais, bebês nos carrinhos pilotados por pais, avós e babás; condutores de cães que não descuidam do asseio das calçadas, estudantes que honram o dinheiro dos pais, trabalhadores a caminho ou voltando do serviço, fregueses de padarias, clientes de bancos, passeantes. Problemas que as autoridades municipais e estaduais deixam crescer.
Raríssimas vezes surge uma figura interessante nas beiras dessa malta. Você vai passando, capta uma frase, um pedaço de história, olha mãos, objetos, gestual que não combina com o dos largados que vão invadindo o bairro, e para, curioso. As pessoas amigas da rua não se incomodam com curiosos.
O homem, simples de roupas, simpático de modos, sentado na mureta do jardim externo da PUC, na Rua Ministro Godói — se é que se pode chamar aquilo de jardim, mal cuidado que é —, havia disposto sobre a grama rala uma quantidade de objetos em muito bom estado, brinquedos infantis na maioria, um deles até na caixa, e quando eu passava ele dizia para outro homem também sentado na mureta:
— Tudo isso catei no lixo. Só pego coisa boa.
— E vai vender? É pra vender? — quis saber o homem.
— Vender? Não! Estou só lhe mostrando. É pra doar.
Aí parei, insinuava-se uma história. O homem que mostrava os objetos continuou, nem um pouco incomodado com mais um ouvinte:
— Recolho para uma creche e umas casas que cuidam de crianças. Tem muita coisa boa no lixo reciclável dos bairros bons. Olha aí, tudo coisa boa, nova, limpa. Tem brinquedo que só precisa de pilha, jogam fora.
Dou uma olhada: boneca de olho azul, bichos de pelúcia, carrinho com música, tralhas da Disney, brinquedos de plástico importados, de madeira. O homem era um coletor diferente, sem carroça, puxava era uma grande mala de rodinhas, em bom estado, que também havia encontrado no lixo. Gostava de falar, sotaque musical do Nordeste:
— Já achei uma caixa de ferramentas novinha, completa, tudo zero. Por que jogam fora uma coisa assim? Essa, guardei para mim. Faz tempo, um rapaz que eu conhecia, ele morava na rua, no Jabaquara, achou uma sacola cheia de dólares numa caçamba de demolição.
— Dólares? — não resisti e entrei na conversa com meu espanto.
— Dólares. Tudo nota de 100.
— Então era muito dinheiro.
— Muito dinheiro. O camarada, coitado, lesinho, lesinho, foi andando pelo meio da avenida atirando punhados de dólares pra dentro dos ônibus que passavam. Ele pensava que era dinheiro de fantasia, dinheiro de novela, e aquilo era uma farra pra ele.
— Jogou tudo fora?
— Eu cheguei e disse pra ele: “Rapaz, isso é dinheiro de verdade. Dê cá uma que eu vou provar pra você”. Só tinham sobrado cinco notas na sacola. Levei ele lá na padaria, o dono conferiu uma, consultou alguém lá, pessoa entendida, trocou por reais, 320. O lesado me deu as outras quatro e saiu todo satisfeito com os 320 contos.
— Vocês voltaram para catar o resto no chão?
— Resto? Sobrou nada, ventania levou, sumiu no ar. É o que eu acho: foi para melhores mãos.
Além de boa-praça, otimista, sábio.