Biblioteca com mais de 50 mil livros sobre o Brasil abre ao público
Prevista para ser inaugurada no sábado (23), a Biblioteca Brasiliana abriga a fantástica coleção particular do empresário José Mindlin
Em seus últimos tempos de vida, o empresário paulistano José Mindlin, falecido em 2010, aos 95 anos de idade, foi aos poucos perdendo a visão. A enfermidade acabou por privá-lo de desfrutar seu maior prazer: ler livros. Para quem devorava até 1.500 páginas por mês, frequentemente sentado em sua poltrona marrom, com um pedaço de marzipã ou chocolate ao lado, a situação parecia desesperadora. Ele deu um jeito, entretanto, de contornar o problema. Chamou amigos e parentes para que lhe contassem as histórias em voz alta. A paixão por livros, principalmente os raros, veio da juventude: aos 13 anos, Mindlin adquiriu, por pura curiosidade, seu primeiro exemplar antigo, Discurso sobre a História Universal, de Jacob Benigno Bossuet, editado em 1740. Na jornada das letras que iniciava ali e seria alimentada pelas oito décadas seguintes, o fã ardoroso de Machado de Assis e Marcel Proust garimpou em sebos do mundo inteiro, trombando pelo caminho com pérolas únicas, em línguas como russo, latim e alemão, que ele, entre outras, dominava. Em sua tranquila residência na Rua Princesa Isabel, no Brooklin, os volumes foram tomando a sala e os quartos, até se estender para dois anexos próximos. O empresário formou, assim, a mais importante biblioteca particular do país. “Quem não lê não sabe o que está perdendo”, dizia.
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Parte do tesouro, que era antes restrito à consulta de pesquisadores que visitavam sua residência da Zona Sul, será agora disponibilizada ao público. No sábado (23) acontecerá a festa de abertura da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, instalada na Cidade Universitária. O espaço começa com suas atividades normais já no dia 25. “A inauguração é de enorme importância para a cidade e torna mais direta a consulta desse acervo tão bem selecionado”, diz Samuel Titan Jr., professor da USP e coordenador executivo do Instituto Moreira Salles. O projeto ganhou vida graças a um desejo antigo de Mindlin, que não viveu para ver seu sonho realizado. Como grande incentivador da leitura, o filho de judeus russos resolveu doar, em 1999, sua inestimável coleção brasiliana, com livros, mapas e manuscritos ligados à cultura nacional. Foi firme ao recusar propostas de renomadas instituições estrangeiras que pretendiam adquiri-la, a exemplo das americanas Stanford e Ucla, pois queria que o espólio permanecesse no país. Escolheu a Universidade de São Paulo, onde, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, se formara na década de 30 e conhecera a então caloura Guita Kauffmann, com quem foi casado por quase setenta anos e teve quatro filhos: a antropóloga Betty, a artista gráfica Diana, o administrador de empresas Sérgio e a cantora Sonia. Eles herdaram o restante dos volumes, que não pertencem à coleção brasiliana. Trata-se de uma estimativa de pelo menos 20.000 exemplares — entre eles, a primeira edição de Os Lusíadas, de 1572 —, que serão doados, vendidos ou divididos de acordo com o interesse dos familiares.
Em um incomum gesto de generosidade, Mindlin criou uma biblioteca pública de peso. Surpreendentemente, enfrentou, para isso, um processo lento e burocrático. De início, pensou em criar uma fundação privada que serviria como receptora dos livros. Descobriu, entretanto, que para fazer a transação precisaria pagar um imposto altíssimo. A saída foi criar na própria USP um órgão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária, que receberia diretamente a benfeitoria e, em contrapartida, deveria construir o prédio e gerir a biblioteca. Os 39.000 títulos e 55.000 volumes, avaliados por especialistas em cerca de 100 milhões de reais, ficarão em estantes num prédio de cinco pavimentos e 6 500 metros quadrados. O edifício faz parte de um portentoso complexo de 20.950 metros quadrados que deve receber no segundo semestre o Instituto de Estudos Brasileiros (que conta com 580.000 itens, também da cultura nacional), o Sistema Integrado de Bibliotecas e uma biblioteca central de obras raras e especiais, todos ligados à universidade.
O projeto, que conta com café, livraria da Edusp, laboratório de restauração, auditório para 300 pessoas e salas de exposições, possui um dispositivo contra cupins, instalação de iluminação regulável e controle de temperatura. Tudo para a preservação adequada do papel. “A questão mais séria para o doutor José era a acomodação das obras, pois ele queria que isso fosse feito com o mesmo cuidado que ele tinha”, conta a curadora Cristina Antunes, há mais de trinta anos uma espécie de anjo da guarda do tesouro literário, cujas páginas conhece como a palma de sua mão.
É ela quem coordenará a consulta das cópias mais frágeis e raras. Nesses casos, haverá uma triagem, com a análise da razão pela qual o interessado precisa dessa obra especificamente para seu estudo. Após receber sinal verde, o pesquisador poderá apreciar o livro desejado na presença de uma bibliotecária em uma sala especial, onde há câmeras em cima de cada uma das mesas. Para folheá-lo, não se pode ter nenhuma bebida, comida, caneta ou mochila por perto. No que se refere a outros tomos, será possível acessá-los a partir de iPads que chegarão no segundo semestre. Já foram digitalizados 4.000 títulos. O objetivo é que todos estejam em breve disponíveis no tablet. “Queremos que esse espaço seja um centro de estudos, e não apenas um museu, um depósito para a conservação da coleção”, afirma Pedro Puntoni, coordenador-geral da biblioteca. “Mindlin sempre almejou a democratização do acesso. Se as pessoas não estiverem lendo, nada disso fará sentido.”
O conhecimento do empresário levou-o a ser secretário estadual de Cultura, nos anos 70, e membro da Academia Brasileira de Letras. Além do olhar atento do bibliófilo e de seu carinho pelas páginas, outro fator importante na conservação dos livros, alguns da época do Descobrimento, foi o trabalho de Guita, falecida em 2006. Também leitora voraz, ela se transformou em uma referência em restauro de papel, inspirada pela paixão do marido, e fundou a Associação Brasileira de Encadernação e Restauro.
Ao formar coleção tão única, Mindlin protagonizou histórias curiosas em suas buscas incansáveis. E eram tantas que renderam até duas obras próprias, Uma Vida entre Livros, lançada em 1997, e Memórias Esparsas de uma Biblioteca, de 2004. “Ele era bastante persistente na procura”, conta a curadora Cristina. “Tinha uma vida muito intensa, mas vivia alegre. Em décadas de trabalho, eu o vi de mau humor apenas duas vezes.” Dono da Metal Leve, empresa de autopeças que fundou em 1950, aproveitava as viagens de negócios para visitar sebos. Antes de desembarcar no destino, checava o endereço de livreiros de exemplares raros na lista telefônica. Entre suas estratégias para barganha, colocava o livro que realmente lhe interessava no meio de outros escolhidos aleatoriamente, entregava-o ao vendedor, que nem sempre sabia da importância da obra, e o somava aos demais. Poucas vezes deixava passar a oportunidade de uma boa compra. Em uma ocasião, preferiu abrir mão de um exemplar de Jean Christophe, de Romain Rolland. Arrependido, voltou à loja dias depois, mas o volume já havia sido vendido. Para sua sorte, veio a descobrir pouco tempo depois que a própria Guita, a quem mencionara a tentação, tinha adquirido a preciosidade para dar de presente em seu aniversário.
Nos anos 40, Mindlin fundou uma livraria de publicações raras no centro de São Paulo, batizada de Parthenon. Visitou a Europa por três meses e trouxe de navio 3 000 exemplares. Toda vez que negociava algum deles, no entanto, dizia o seguinte ao comprador: “Se pensar em revender este livro, não deixe de falar comigo”. Depois de cinco anos, quando saiu da sociedade da loja, conseguiu recuperar quase tudo. Muitos amigos, escritores e intelectuais, recheavam sua coleção com presentes. Entre eles estavam Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e Rubens Borba de Moraes, que lhe deixou em testamento toda a sua biblioteca brasiliana particular, muito rica, cuja disposição espacial foi reproduzida fielmente na casa da família no Brooklin — e também na USP. A paixão pelos livros era tanta que Mindlin chegou a comemorar um aniversário de Trionfi, Sonetti e Canzoni, publicação de 1488 de Francesco Petrarca, um dos mais antigos do acervo. Houve bolo e parabéns.
Seu legado, construído durante a vida, ganha assim, finalmente, uma nova casa, à altura da importância da coleção e de seu formador. A neta Lucia Loeb mantém a memória do avô viva com o lançamento, previsto para o fim do mês, de um livro, batizado de Para a Tão Falada Biblioteca José e Guita Mindlin, recheado de 125 dedicatórias encontradas nas páginas do acervo. “Quis homenageá-lo”, diz. Seu irmão, Rodrigo, cuidou do projeto arquitetônico do edifício junto de Eduardo de Almeida, arquiteto e amigo de longa data do avô. Ambos aceitaram a tarefa a pedido do próprio Mindlin. O bibliófilo não pôde, contudo, apreciar o resultado de seus esforços. Segundo Rodrigo, talvez tenha sido melhor assim. “Acho que ele já sabia que não iria ver o local pronto”, acredita. “Nunca conseguiria ficar com a casa vazia, longe dos livros que tanto amava.”
A nova atração do câmpus
Alguns dos números e características do projeto
■ A estrutura de 20 950 metros quadrados contará com a Biblioteca Guita e José Mindlin, o Instituto de Estudos Brasileiros, o Sistema Integrado de Bibliotecas da USP e uma biblioteca central de obras raras e especiais da universidade
■ Sua construção levou seis anos e custou 127 milhões de reais, captados via Lei Rouanet, por meio de doações e por investimento da reitoria
■ Em cinco pavimentos, a Biblioteca Mindlin, de 6 500 metros quadrados, abrigará 39 000 títulos e 55 000 volumes
■ A coleção é avaliada em 100 milhões de reais
■ Conta com dispositivo de acesso por biometria e sistema de câmeras e sensores. Dispõe ainda de controle de temperatura e iluminação pensados para preservar os livros, além de base contra cupins