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Nos bastidores da cura gay

A reportagem de VEJA SÃO PAULO percorreu dez igrejas evangélicas da capital para saber o que os pastores pregam sobre a homossexualidade

Por João Batista Jr. [Colaboraram Daniel Bergamasco e Nathalia Zaccaro]
Atualizado em 19 set 2017, 19h31 - Publicado em 28 jun 2013, 17h14

O salão térreo de um casarão colonial onde se localiza a Igreja Cristã Pentecostal Independente Maravilhas de Jesus, no centro, tem bancos de estofado puídos e um palco pequeno. Ao lado das portas de entrada, três pastores estão a postos para receber os fiéis. Às 15 horas da última quarta (26), um dos líderes espirituais disponíveis era Aristides de Lima Santos. Usando calça de brim creme, camisa azul-claro com todos os botões fechados e um blazer escuro por cima, o senhor de estatura baixa aparentava pouco mais de 50 anos de idade. Ao ser abordado, simpático e solícito, contou um pouco de sua história. Lembrou que, antes de aceitar Jesus, vivia no pecado: era um mulherengo incorrigível. “Desses que não conseguem passar uma semana sem uma companheira diferente”, confessou. Na função de orientar o rebanho, está acostumado a lidar com todo tipo de gente e de angústias. Conta já ter recebido por lá algumas pessoas dispostas a abandonar a homossexualidade. Com base nessa experiência, criou uma teoria a respeito dos gays que querem se tornar héteros. “Irmão, é preciso arrumar uma mulher quanto antes para casar e ter filhos”, costuma aconselhar. “Ela não precisa saber que o senhor tinha essa tendência. Vai ajudar na sua libertação.”

Em seguida, Santos abre sua bolsa e tira uma Bíblia cheia de anotações e trechos grifados. Com voz calma, lê passagens para justificar essa linha de raciocínio. Cita Mateus 26:41, olhando nos olhos do interlocutor: “Vigiai e orai para que não entreis em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca”. Do Levítico 18:22 extrai a seguinte passagem: “Não te deitarás com um homem, como se fosse uma mulher: isso é uma abominação”. As palavras do livro sagrado servem para justificar o pensamento do pastor. Segundo ele, na escala de malfeitorias, um homossexual está na mesma categoria do ladrão, do assassino, do viciado em drogas e do adúltero. Todos são pecadores mortais. “Mas Deus é misericordioso e não discrimina ninguém, desde que a pessoa liberte sua alma do diabo”, ameniza. Termina a pregação fazendo uma ressalva: “Homossexuais são como as prostitutas: sofreram alguma macumba e têm influências de forças malignas”.

Pastor Eder Brotto, da Igreja Mundial do Poder de Deus (Lucas Lima/Veja SP)

Na semana passada, VEJA SÃO PAULO ouviu frases como essas em um périplo por dez igrejas evangélicas da metrópole, das mais variadas vertentes. Sem se identificar como jornalista, o repórter bateu às portas de cada uma dizendo que era um homossexual disposto a tentar uma nova vida. O objetivo era saber como essa questão é tratada no dia a dia dessas religiões. Em outras palavras: afinal, a tão falada “cura gay” existe na prática?

O assunto entrou no centro das discussões após um projeto de lei do deputado João Campos (PSDB-GO) que suspende o trecho da resolução do Conselho de Psicologia de 1999 que proibiu profissionais da área de oferecer tratamento e cura de homossexualidade. Um profissional que iniciar uma terapia com o objetivo de fazer de um gay um heterossexual pode ser hoje processado e ter seu diploma cassado. A proposta de Campos foi aprovada pela Comissão de Direitos Humanos, liderada pelo pastor e deputado Marco Feliciano (PSC-SP). Essa mudança provocou uma grande polêmica e virou um dos temas da atual onda de manifestações no país. No último dia 21, segundo cálculos da PM, cerca de 1 000 pessoas iniciaram uma passeata na Praça Roosevelt, no centro, portando cartazes como “Feliciano, cura o Ricky Martin para mim?”. Na quarta passada, aproximadamente 300 pessoas (também de acordo com estimativas da PM) realizaram um ato parecido na Avenida Paulista.

Eduardo Rocha (Lucas Lima/Veja SP)

No universo dos templos visitados, ninguém usou o termo “cura gay” ou demonstrou ter um programa específico para tal finalidade. Nove dos dez pastores consultados, entretanto, sugeriram algum tratamento espiritual para a pessoa se livrar do que consideram um pecado grave. Para eles, a prática homossexual é condenável e precisa ser mudada imediatamente, sob o risco de o transgressor acabar no inferno. “Com muita oração, renegando os amigos homossexuais e tirando a influência de qualquer magia negra, é possível um gay se casar e ter filhos. Já vi muitos pastores convertidos”, garantiu na última terça (25) André Luís, da Universal do Reino de Deus localizada na Rua dos Timbiras, no centro.

Endereços da Assembleia de Deus Ministério do Belém, da Internacional da Graça de Deus e da Deus É Amor também foram visitados. “Não é natural ser assim: 100% dos homossexuais sofreram feitiço”, afirmou a pastora Maria do Carmo Moreira, da Comunidade Cristã Paz e Vida. “Entregue sua alma a Jesus e não procure um psicólogo, que vai achar tudo normal e querer que o senhor se aceite.” Na Igreja Mundial do Poder de Deus, o pastor Eder Brotto foi categórico: “Isso é coisa do capeta”. Depois de proferir uma oração de libertação (“Feche os olhos, leve a mão direita à altura do coração e comece a renegar os prazeres da carne”), Brotto sugeriu ao repórter que frequentasse a igreja às sextas e aos domingos, além de rezar três vezes por dia ajoelhado no chão.

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A pastora Rosania Rocha (esq.) e a sua namorada, a missionária Lanna Holder, que fundaram a Comunidade Cidade de Refúgio, igreja evangélica no centro de SP, que acolhe pessoas vítimas de intolerância. (Eduardo Anizelli/Folhapress/Veja SP)

A homossexualidade é condenada por praticamente todos os segmentos do cristianismo, com poucas exceções, como a Igreja Anglicana, que até já ordenou sacerdotes gays. A abordagem do tema, porém, é muito variável. “Em geral, casos de exorcismo e gritaria são mais comuns nas evangélicas neopentecostais, enquanto nas protestantes tradicionais e na católica a questão costuma ser tratada em conversas individuais, na privacidade do gabinete pastoral”, diz a teóloga Sandra Duarte de Souza, professora e pesquisadora da Universidade Metodista de São Paulo. “Essa forma mais discreta, entretanto, não significa que seja menos violenta. A pressão em conversas duras pode ser tão devastadora quanto os rituais ao estilo ‘sai, capeta’.”

Os pastores que pregam contra a prática gay se valem invariavelmente de trechos da Bíblia. Trata-se de um terreno minado. Ocorre que as discussões sobre interpretação e até mesmo as traduções dos textos fazem com que o significado de tais passagens seja questionado. “Os fundamentalistas tomam ao pé da letra alguns trechos, esquecendo de outros nos quais Jesus prega o acolhimento e o amor aos excluídos”, observa o teólogo Paulo Sérgio Lopes Gonçalves, da PUC de Campinas.

Personagem: Marco Feliciano, deputado Federal do PSC (Cristiano Mariz/Veja SP)

O trabalho de libertação, como dizem nas igrejas evangélicas, acabou criando um novo gênero: os ex-gays. Eles são quase como propagandas ambulantes do processo, apontados como provas vivas de que, com a ajuda de Deus — e dos pastores, claro —, é possível transformar sua orientação sexual. “Graças ao Senhor, entendi que a maneira como eu vivia era errada e busquei forças para sair daquilo”, conta o presbítero Eduardo Rocha, representante da Igreja Sal da Terra. Rocha era um transformista conhecido pelo nome de guerra Grevâniah Rhiuchélley. Ele começou a se vestir de mulher aos 16 anos, mas conta que sentia atração por meninos desde os 12. Cocaína e maconha entraram rápido na sua rotina. “Eu debochava de religião, não tinha respeito por Jesus”, penitencia-se.

Tudo mudou durante uma rave na cidade de Alto Paraíso, no interior de Goiás. Foi quando Rocha teria ouvido uma voz. “Ela me dizia que o Senhor ia mudar minha vida.” Desde então, o baladeiro passou a ler a Bíblia e a frequentar cultos. “O processo não foi traumático ou agressivo, mas muito difícil”, lembra. Cinco anos depois da conversão, em 2007, Rocha se casou com a musicista Genoveva Geni. Hoje, eles trabalham para que outros jovens encontrem a tal salvação. Às quartas-feiras, o ex-transformista se encontra com um grupo de cerca de vinte gays em reuniões nos moldes dos alcoólicos anônimos. “Oramos, lemos a Bíblia, cada um conta sua história e tento fazê-los entender que precisam sair da vida de pecado”, descreve. Rocha também dá seus testemunhos em diversas igrejas evangélicas da cidade e organiza o Seminário de Sexualidade Cristã, que aborda temas como “pureza sexual” e “restauração da identidade”. Diz ele: “Todos que estão vivendo como homossexuais enfrentam um desvio de personalidade que deve ser contornado”.

Manifestantes se concentram na Praça Roosevelt e caminham até a Av. Paulista durante protesto contra Projeto Cura Gay, em 2013 (Pedro Paulo Ferreira/Fotoarena/Veja SP)

Na contracorrente, começaram a surgir no meio evangélico algumas dissidências. É o caso da pastora Lanna Holder, lésbica assumida e fundadora da igreja Comunidade Cidade de Refúgio. Até os 20 anos, segundo relata, Lanna levou a vida com fartura de drogas, álcool e namoradas. “Depois me converti e passei a pregar contra as lésbicas”, conta. Na época, chegou a se casar com um homem e teve um filho. Lanna defendeu a “cura gay” por dezesseis anos. O ponto de virada tem nome e sobrenome: Rosania Rocha, uma cantora gospel. As duas lutaram contra a paixão, tentaram se libertar da atração, mas jogaram os panos. Em 2011, fundaram juntas a Comunidade Cidade de Refúgio, localizada no centro. Elas já contam com 600 fiéis, em sua maior parte gays. “Quase todos eles tentaram se ‘salvar’ e não conseguiram. É normal recebermos aqui gente que já quis se matar várias vezes devido a esses processos, que causam um problema sério de autoaceitação”, diz Lanna.

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Não são apenas igrejas fundadas por homossexuais que pregam a tolerância. “Desvirar gay para quê?”, perguntou ao repórter de VEJA SÃO PAULO a obreira Rose Silva, do Centro de Meditação Cristã, no Brás, no encontro ocorrido no fim da tarde da última quarta (26). “Faça uma oração da libertação para se aceitar, não para se reprimir. Deus ama a todos em sua plenitude.” Rose concorda que as igrejas evangélicas não toleram a prática homossexual, mas para ela a questão deveria ser abordada com outro viés. “Em primeiro lugar, penso se a pessoa interfere negativamente na vida dos outros. Se não, quero mais é que ela seja feliz.”

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As igrejas Universal, Internacional da Graça de Deus, Mundial e Deus É Amor: os homossexuais são pecadores, atuam sob influência do “maligno” e precisam da “libertação” (Mario Rodrigues/Christian Tragni/FolhaPress/Roberto Setton/Veja SP)

“ISSO É COISA DO CAPETA”

Em nove dos dez endereços visitados pelo repórter, que não se identificou como tal, os pastores trataram a homossexualidade como um pecado e deram conselhos para a conversão. A seguir, trechos de alguns dos encontros

Igreja Cristã Pentecostal Independente Maravilhas de Jesus, no centro (pastor Aristides de Lima Santos)

— Sou gay e quero mudar de lado. Como faço?

— Precisa seguir o ditado bíblico: “Vigiai para não entrar em tentação”. É fundamental que o senhor se case para aceitar Jesus, se libertar e não pensar em homem.

— Não há o risco de minha companheira ser infeliz? — Ela não precisa saber que o senhor era gay. A Bíblia diz que varão não pode ter relacionamento com outro varão. A homossexualidade é um pecado mortal, assim como matar.

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Comunidade Cristã Paz e Vida, no centro (pastora Maria do Carmo Moreira)

— Sou gay e quero saber se é possível virar heterossexual.

— Para Deus, nada é impossível. Não é natural ser assim: 100% dos homossexuais sofreram feitiço.

— O que devo fazer para mudar?

— Depende de você saber que está no caminho errado e fazer a vontade de Deus. Leia este livro, Jesus, a Vida Completa, frequente os cultos, ore e abandone a vida de prazeres da carne. O caminho será um processo natural, pode ter certeza.

Igreja Universal do Reino de Deus, no centro (pastor André Luís)

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— Sou gay e quero saber se é possível trocar de lado.

— Sim, conheço alguns pastores que eram assim e hoje são casados e têm filhos. Assim como um viciado em cocaína precisa se livrar dos amigos drogados, um homossexual tem de deixar de lado a sua turma. É preciso também evitar bares e baladas para não cair em tentação.

— O que mais?

— No começo, precisa vir pelo menos quatro vezes por semana à igreja para tirar o capeta do seu corpo. Pagar os 10% do dízimo também é fundamental. É devolver para Deus a graça de você ter ido para o caminho certo.

Igreja Mundial do Poder de Deus, na Zona Leste (pastor Eder Brotto)

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— Sou gay e quero virar heterossexual. É possível?

— É fundamental, caso contrário vai para o inferno. Isso é coisa do capeta.

— Como faço?

— Tem de vir aqui às sextas, dias em que tiramos o capeta do corpo, e aos domingos. Tenha uma Bíblia ao lado da cama. Ore três vezes ao dia, ajoelhado (podemos nos humilhar para Deus). Sugiro ler Isaías, capítulo 44. Fala da aceitação do Senhor. E não deixe de pagar o dízimo.

Igreja Pentecostal Deus É Amor, no centro (pastor Lourival de Almeida)

— Quero deixar de ser gay. É possível?

— Claro. Tudo é uma questão de poder do controle.

— Como assim?

— Sou homem no sentido heterossexual da palavra. Todo homem é, por essência, polígamo. É preciso ter o próprio domínio para respeitar e honrar a mulher. O mesmo vale para o homossexual: controle seu desejo.

Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus, na Zona Leste (pastor Paulo Rogério)

— Quero me tornar heterossexual. Como faço?

— Para tirar a influência do diabo, precisa fazer uma série de orações.

— Por exemplo?

— Sexta é o dia em que o diabo está mais presente na sociedade. Faça jejum à noite, antes de vir para a igreja. Volte a comer no sábado de manhã. Vai ajudar no trabalho de purificação.

Casa da Bênção, na Zona Leste (pastor Cléber Lana)

— Como faço para deixar de ser gay?

— Isso é uma maldição hereditária. Existem outras pessoas assim na sua família?

— Que eu saiba, não.

— Então pode ser algum trabalho feito contra você. Sugiro que se entregue a Deus, ore e frequente cultos de libertação.

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