Portadores de nanismo driblam limitações e conquistam espaço
O geneticista, a executiva de banco, a fashionista do Instagram e outras histórias de quem superou as adversidades e o preconceito
Nos anos 70, Nelson Ned, dono de um vozeirão inversamente proporcional ao seu tamanho (1,12 metro), estourou com músicas românticas como a autorreferente Tamanho Não É Documento. O “pequeno gigante da canção”, como ficou conhecido, vendeu mais de 40 milhões de álbuns, virou ídolo na América Latina e apresentou-se algumas vezes no prestigiado Carnegie Hall, em Nova York. Hoje, aos 66 anos de idade, enfrenta problemas de saúde e vive em uma clínica de repouso na cidade de São Roque, a 62 quilômetros de São Paulo. “Meu pai teve de viajar para o exterior para galgar sua própria história”, diz um de seus três filhos, Nelson Ned Junior, cuja estatura de 1,08 metro não o impediu de se tornar um baterista profissional. Ele estudou em uma escola de jazz na Suíça, tocou com artistas internacionais do porte de Cesaria Évora e Tito Puente Jr. e vive no México desde 2011. “No Brasil, anão só se destaca no programa Pânico”, desabafa.
+ Em vídeo: os personagens falam sobre sua rotina
+ Atrações no showbizz: alguns anões que ficaram famosos na TV, no cinema e na música
Segundo estimativas, existem no país aproximadamente 20.000 pessoas com nanismo. Cerca de 10% desse total mora na cidade de São Paulo. Nas últimas décadas, a medicina conseguiu amenizar vários dos efeitos colaterais da deficiência, como o sobrepeso e o desgaste da cartilagem dos ossos. Esses avanços, entretanto, foram insuficientes para acabar com todos os estigmas relacionados ao problema. Além de serem apontados muitas vezes na rua como se fossem aberrações da natureza, os anões sofrem para realizar tarefas simples. Precisam de ajuda para apertar os botões do elevador, entrar no ônibus, subir escadas ou assistir a um filme no cinema, por exemplo. “Dentro do grupo de deficientes, eles enfrentam mais preconceitos que os cadeirantes e os cegos”, entende o ortopedista João Thomazelli, o principal especialista em nanismo do país. “Já tive paciente que tentou se matar por causa de depressão”, afirma ele, que atende em um consultório no Itaim e faz cirurgias no Hospital Santa Catarina.
Nesse contexto, histórias de gente que conseguiu superar tantas barreiras ainda representam uma exceção na capital. Ter o apoio em casa é fundamental para a aceitação. Foi o caso do médico geneticista Wagner Baratela, de 33 anos e 1,08 metro, morador do Tatuapé. Em 1980, seu pai ajudou a fundar a Associação Gente Pequena. O objetivo era trocar informações com outros casais que tinham filhos na mesma condição. Hoje, a entidade reúne cerca de 1 000 associados no Brasil. “Sempre recebi auxílio dos meus velhos para seguir com os estudos”, conta Baratela. A designer Natalia Cruz, 23 anos e 1,28 metro, também considera a assistência da família como um dos fatores decisivos na sua evolução profissional. “Eles me incentivaram muito”, afirma ela, que virou sensação no Instagram ao postar fotos de seu visual no perfil que criou, chamado Mini Look do Dia.
A inserção no mercado de trabalho melhorou a partir de 2004, quando o nanismo foi incluído na lei de cotas para deficientes. “Temos móveis adaptados e treinamento específico para recebê-los”, enumera Fátima Gouveia, superintendente de recursos humanos do Santander. O banco possui 50.000 funcionários, dos quais 2 700 são deficientes. “Há 45 anões trabalhando hoje conosco”, afirma a executiva. Judite Rosa, 37 anos e 1,23 metro, entrou como estagiária na empresa em 2005 e atualmente ocupa o cargo de analista sênior de treinamento. Neste ano, ela concluirá um MBA na USP. “No passado, cheguei a fazer figuração em programas do Gugu e do Ratinho”, diz Judite. “Mas larguei tudo porque não queria ser alvo de chacota.” Nas páginas a seguir, conheça melhor esses e outros casos dos pequenos gigantes da superação.
UM MÉDICO ESPECIAL
Filho de um dentista e de uma professora, Wagner Baratela, de 33 anos, nasceu com displasia diastrófica, que é um tipo raríssimo de nanismo (ocorre numa proporção de um em cada 100.000 nascimentos). Trata-se de uma doença recessiva, ou seja, herdada de um gene de cada progenitor. Seus pais são portadores dessa mutação genética (ele tem duas irmãs, ambas de estatura normal). “O ser humano possui entre 20.000 e 30.000 genes”, diz. “Eu tenho apenas um deles alterado.” A diferença costuma provocar transtornos enormes na estrutura física. O médico nasceu com os pés extremamente tortos, em forma de arco. Também não consegue fechar as mãos como uma pinça, o que o impede de realizar gestos banais, como segurar uma garrafa. Baratela fez 25 operações corretivas entre 1 e 14 anos de idade. Só os pés ele “quebrou” cinco vezes para que ficassem na posição correta. Também passou por intervenções nos quadris e nos braços. Os procedimentos foram realizados no Hospital Johns Hopkins, um dos principais centros ortopédicos dos Estados unidos, mundialmente reconhecido pelos tratamentos e cirurgias feitos em anões. Apesar das dificuldades, ele acabou sendo bem-sucedido nos estudos. “Na faculdade, minha maca para dissecar cadáver era bem baixa”, lembra. Despertado para o problema por seu próprio caso, escolheu fazer residência em genética na USP e se especializou em doenças esqueléticas. Hoje, além de dar expediente em uma clínica particular no Tatuapé, atende no Instituto da Criança, no Hospital das Clínicas, onde ajuda a mapear o DNA de bebês nascidos com nanismo. Com 1,08 metro, ele usa para se locomover uma scooter movida a bateria. Apesar da pouca idade, já sofre de artrose. Palmeirense roxo, adora ver jogos em estádios e passear no shopping com sua namorada, que tem 1,60 metro. “Se não fossem meus pais, que investiram muito tempo e dinheiro para me ajudar, eu jamais teria chegado até aqui”, agradece. “Posso garantir que sou um cara de muita sorte.”
MINIFASHIONISTA
Ela consegue usar brilho com naturalidade durante o dia, não erra jamais nas sobreposições e faz o estilo moderninha do Baixo Augusta. Inspirada nas blogueiras que publicam o visual adotado no dia, Natalia Cruz, de 23 anos, criou no Instagram o Mini Look do Dia. Na página, posta as combinações escolhidas para ir trabalhar ou sair à noite. Em dois meses, ganhou 6 600 seguidores. “Muita gente elogiou minha atitude”, conta. “O mundo fashion é plural e não precisa segregar.” Uma de suas regras é jamais divulgar as marcas que usa. “Tem gente que veste as peças porque as recebeu de presente, e não porque as escolheu na loja.” Nascida no Uruguai, ela se mudou com a família para São Paulo aos 5 anos de idade. Formada em design gráfico pela Faap, mora com o pai e a irmã em Alphaville e trabalha em uma agência de publicidade no Brooklin. Com 1,28 metro, realiza suas compras em lojas como a Maria Filó. “Peço ao costureiro para cortar as mangas das blusas”, revela. Recorre a butiques de crianças quando precisa de sapatilhas. “Eu calço 32”, explica. Natalia namora há cinco anos o artista plástico Silvio Senne, de 26 anos e 1,85 metro. “Nós nos conhecemos na boate Glória, na Bela Vista”, lembra. Ele virou o fotógrafo oficial das fotos postadas no Instagram.
EX-AJUDANTE DO RATINHO
Até os 3 anos, Judite Rosa parecia uma criança normal e com a estatura compatível para a sua idade. Até que sofreu um problema nas pernas que a deixou imóvel. Como sua família era pobre, vivia no interior de Mato Grosso do Sul e seus pais tinham outros doze filhos para criar, eles resolveram mandá-la para São Paulo aos cuidados de um padrinho. Na investigação sobre as causas da paralisia (soube-se depois que ela era decorrente de um reumatismo sanguíneo), os especialistas descobriram também que Judite sofria de nanismo. O tratamento para voltar a andar foi difícil e lento. “Fiquei de cama até meus 6 anos. A partir disso, fiz fisioterapia até os 15”, relata. No fim da adolescência, preocupada em pagar as próprias contas, ela fez bicos de faxineira, garçonete e figurante de TV, em programas dos apresentadores Ratinho e Gugu. “Desisti para não ser alvo de chacota”, diz. Graças a uma bolsa de estudos, cursou administração de empresas e entrou como estagiária no Santander em 2005. Depois de algumas promoções, hoje é analista sênior no setor de treinamento de novos funcionários do banco. Como a instituição contratou 45 anões nos últimos anos para preencher as cotas reservadas a deficientes, vários deles foram recebidos por Judite. “Falo da minha história e digo que sou um exemplo de que é possível ter uma vida profissional bacana”, afirma. Ambiciosa, ela planeja agora os próximos passos da carreira. “Termino neste ano meu MBA”, orgulha-se. Dona de um sorriso largo, Judite, de 37 anos, chama atenção pela beleza. “Sou muito bem casada e meu marido, que tem altura normal, é ciumento”, brinca. Ela tem um veículo Honda Fit adaptado, mas prefere ir de sua casa, em Perdizes, até o escritório, na Vila Olímpia, de ônibus fretado. Fez uma cirurgia corretiva no fêmur esquerdo, então 6 centímetros menor que o direito, no ano passado. “Meu médico diz que meus ossos são de uma mulher de 70 anos.”
AS EMPRESÁRIAS DAS MINIATURAS
Quem entra na loja de 30 metros quadrados parece se transportar para um universo paralelo. Na verdade, “universinho”. Por ali, estão expostos 15.000 itens em versão miniatura. Mesa, prato, garrafa, jogo de cozinha, máquina fotográfica e bonecos da escritora Clarice Lispector e do cineasta Woody Allen. Tudo tão delicado que cabe na palma da mão. Os preços variam de 1 a 300 reais. O item mais caro é uma minicristaleira. A ideia de criar o negócio, batizado de Casinha Pequenina, veio das irmãs Adriana Cabral, de 47 anos e 1,28 metro, e Mila, de 44 anos e 1,18 metro (na foto, a caçula está à dir.). Antes de virarem empreendedoras, elas pensavam em seguir carrreira artística. A mais velha estudou artes plásticas e a caçula fez curso de atuação no Teatro Escola Macunaíma. Depois de receberem muitos “nãos” na busca por emprego, abriram há vinte anos o comércio no Shopping Eldorado. O lugar é bastante procurado por decoradores e colecionadores em geral. “Mandamos fazer com exclusividade os objetos, que são encontrados apenas aqui”, explica Mila. Apesar das dificuldades que enfrentaram, não concordam com as políticas para facilitar o acesso de pessoas como elas ao mercado de trabalho. “O anão deve ser contratado por méritos próprios”, acredita Mila. Seu namorado, Valdiney Monteiro de Melo, tem 1,10 metro e trabalha como auxiliar administrativo da NET. Foi agraciado pela lei das cotas. “Mas o Ney é bom, faz faculdade e conseguiu promoção por merecimento”, diz. Um tablado de madeira está disposto no chão atrás do balcão da loja para que elas ganhem uns centímetros na hora de encerrar a compra dos clientes.. “A nossa autoestima é muito debilitada”, reconhece Adriana. “É uma luta diária para não nos abalarmos com tanto preconceito.” Elas abrem o sorriso quando lembram dos anões que já visitaram o endereço. “Eles se sentem motivados a seguir em frente ao saber que somos as donas”, afirma Mila.
A ADVOGADA DE 1,32 METRO
Vera Helena Ribeiro dos Santos, de 59 anos, nasceu com dois problemas: síndrome de Turner (anomalia cromossômica que impede o desenvolvimento do aparelho reprodutor) e deficiência no hormônio docrescimento. Desenvolveu-se até 1,32 metro de altura.“Por meio centímetro, não tenho 1,33”, brinca. Ela jamais menstruou sem a ajuda de hormônios, tirou os dois ovários aos 12 anos para evitar complicações futuras e os pais nunca falaram abertamente de seu nanismo.“Minha mãe me fazia usar saltos altos, iguais aos da Carmen Miranda, para eu sair de casa”, lembra. O caso de Vera é bastante raro. Todos os seus membros são proporcionais, mas em tamanho reduzido.Ela ingressou aos 23 anos no curso de jornalismo da Cásper Líbero. Depois, cursou direito no Mackenzie. Formada, atuou nas áreas de família e trabalhista, sempre como autônoma. “Nunca deixei o preconceito impedir meu trabalho.” Ela se recorda de ter sido olhada de cima a baixo por alguns juízes e advogados adversários.“Você tem idade para advogar?”, diziam, jocosamente. Vera casou-se com um piloto de corrida em 1997. O relacionamento teve várias idas e vindas. No total, durou doze anos. Hoje, está solteira. “É difícil arrumar parceiros, pois nem todos os homens gostam de baixinhas.” Vera trabalha atualmente como advogadade conciliação no Fórum João Mendes, onde já resolveu mais de 300 casos. Também ocupa a presidência da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Pinheiros. “Dou orientações sobre processos que envolvam minorias.” Nunca teve um anão como cliente. “Muito sdeles são tímidos e evitam brigar na Justiça para não se expor.”
“PAPAI E MAMÃE SÃO ADULTOS PEQUENOS”
Ele faz bico como ator de propaganda e ganha a vida como gestor de recursos humanos do Itaú. Ela estudou marketing e trabalha no segmento de consignados do Santander. Bruno e Rosely Corrêa se conheceram numa festa de amigos anões, trocaram olhares e ficaram juntos logo no primeiro encontro. “Anão trabalha, namora, joga futebol e beija na boca como qualquer pessoa”, diz Bruno, que tem acondroplasia (o tipo que acomete 75% dos portadores de nanismo). Rosely não sabe qual é o fator responsável por sua baixa estatura. Casados e morando em apartamento próprio de 54 metros quadrados em Santo Amaro, eles tomaram a decisão de ter um filho. Rosely passou os últimos meses de gravidez dormindo sentada. “Valeu todo o sacrifício.” Matheus veio ao mundo sem a mesma deficiência. “Minha mãe jamais me escondeu dos amigos e dos parentes, algo que aconteceu com muitas amigas anãs”, conta Rosely. “Nunca tive problema de aceitação.” Ela se diz receptiva a pessoas que perguntam sobre sua situação e, em alguns casos, pedem para tirar foto na rua. Não admite, no entanto, mães que ficam alheias a risadas e apontamentos feitos por parte de seus filhos. “Fazer caçoada de mim, nem a pau.” Prestes a completar 4 anos, Matheus tem 1,03 metro (seu pai mede 1,21 e sua mãe, 1,23). Na definição do garoto, “papai e mamãe são adultos pequenos”.
ANOMALIA NO CRESCIMENTO
Os principais tipos e características da deficiência caracterizada pela baixa estatura
O que é nanismo?
Trata-se de uma anomalia no crescimento. A estatura das pessoas que sofrem de nanismo varia de 80 centímetros a 1,40 metro. Em média, a probabilidade de ocorrência da doença é de um caso a cada 20 000 nascimentos. Os distúrbios do tipo se dividem em dois grandes grupos: genéticos (irreversíveis na questão do tamanho) e hormonais (há possibilidade de crescer com a ajuda de remédios).
Qual é o tipo mais comum?
A acondroplasia — cabeça grande, quadris largos e membros curtos — ocorre em 75% dos casos de nanismo. Trata-se de uma mutação genética que inibe o crescimento no fim dos ossos. Problemas no ouvido são bastante comuns, pois a deformidade óssea facilita o acúmulo de secreção na região. Os órgãos sexuais são de tamanho normal e é possível ter filhos.
Há tratamento?
Para os tipos de origem genética, não. No caso de problemas de deficiência na hipófise, a glândula do crescimento, são indicadas injeções diárias do hormônio GH durante a infância. Alguns médicos realizam cirurgias de alongamento ósseo, um processo dolorido e com risco de complicações e inflamações. Em geral, são feitas com objetivos estéticos e por pacientes que sofrem de depressão.
Quais são as complicações de saúde?
A expectativa de vida é a mesma do restante da população. Alguns, no entanto, sofrem uma espécie de envelhecimento mais rápido das articulações e dos ossos. É comum terem, já aos 30 anos, problemas como artrose. Anões do tipo acondroplásico têm o estômago e o apetite de uma pessoa comum, o que aumenta o índice de sobrepeso e suas consequências, como diabetes e doenças cardíacas.
Qualquer pessoa pode ter um filho anão?
Sim. O anão acondroplásico é fruto de uma mutação dos genes. Portanto, todos estão sujeitos. Um anão com acondroplasia, nascido de pais normais, tem 50% de probabilidade de gerar um filho com a mesma deficiência. Já aquele com nanismo diastrófico tem 50% de probabilidade de gerar um filho com a mesma deficiência (se casar com uma portadora da mutação) ou zero (se ela não for portadora).