Os dramas e dilemas dos analfabetos paulistanos
Em números absolutos, a capital tem a maior quantidade de iletrados do Brasil: são 280 000; conheça o difícil cotidiano dessas pessoas
O mensageiro que precisava entregar uma correspondência no prédio chegou mais perto e falou baixinho ao porteiro: “O RG e o nome eu anoto para você, mas no lugar da assinatura você faz um visto. É um rabisco, vale no universo inteiro”. Desde esse episódio, ocorrido em 2006, José Geraldo Ferreira dos Santos, de 54 anos, natural de Junqueiro, em Alagoas, leva uma caneta no bolso da camisa, inclusive na do uniforme de empregado de um prédio da Avenida Paulista. “Vai saber quando precisarão da minha assinatura”, diz. Mas, se pedem para ver a carteira de identidade, não tem jeito. Está lá um “NÃO ALFABETIZADO” em negrito e letras maiúsculas.
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Em números absolutos, a metrópole tem a maior quantidade de sem-letras do Brasil, um vexame para a cidade mais rica do país. Segundo o censo de 2010, 280 000 moradores daqui são analfabetos (eram 354 000 em 2000). Rio (147 000) e Fortaleza (131 000) aparecem em seguida. Os iletrados paulistanos representam 3,2% da população. Há capitais com índices mais elevados, a exemplo de Maceió, com 12%.
Na direção inversa, Florianópolis registra a menor incidência (2,1%). São homens e mulheres acima dos 15 anos que passam em branco por vitrines em liquidação, placas de “aluga-se”, cartazes de pastel de feira… Gente muitas vezes mergulhada no constrangimento por ter de pedir socorro para saber se o ônibus que está vindo é o Tucuruvi/Mandaqui. De acordo com a definição oficial, são indivíduos incapazes de fazer uso social da escrita e da leitura. “Essa taxa de analfabetismo se explica pela existência de pessoas acima dos 40 anos que não estudaram na infância, mas entraram no mercado de trabalho”, afirma Iraci Ferreira Leite, coordenadora do Mova São Paulo, programa de alfabetização parceiro da prefeitura.
Geraldo é uma delas. Para se locomover, ele, que é morador de Jardim Horizonte Azul, na Zona Sul, costumava pagar “10 merréis” pelo auxílio de um sobrinho. Mas uma hora o rapaz se encheu, disse que não era guia de cego. Humilhado, o faxineiro teve de ouvir do irmão que São Paulo é assim mesmo, “terra onde filho chora e pai não vê”. Decidiu nunca mais pedir ajuda.
Além da caneta, carrega no bolso uma carteira gorda, prenha de papéis com o número do próprio celular, um extrato do FGTS com o endereço de casa, a conta bancária da pensão da ex-mulher. Os algarismos ele aprendeu com um colega de obra assim que chegou à cidade, em 1983. Tinha 21 anos e nenhum de estudo. “Meu pai mandava só as filhas moças para a escola, eu tive de ir para a lavoura.” No trabalho ou no mercado, jura que nunca confundiu limpa-vidro com limpa-pedra. Identifica os produtos pelo rótulo e pela cor. “Se tem dois brancos, pingo na mão e sinto o cheiro.”
Mas, como tem coisa que não dá para cheirar antes, essa técnica nasal não é tiro e queda. Num dia desses, Erivelto Silva, saindo do trabalho de jardineiro no Colégio Waldorf Micael, no Jardim Boa Vista, na Zona Oeste, entrou no mercado doido para tomar iogurte. Escolheu um pela cor e pelo formato do frasco que ele ia brigando para abrir, quando a mulher o alertou: “Que é isso? Vai comer creme de bolo cru?”.
Paraibano de Solânea, 46 anos, há quase trinta em São Paulo, quando menino ele “desejou” (o verbo é dele) ir à escola. Mas seu pai, como o de Geraldo, tinha outros entendimentos. “Tá aqui a sua caneta”, e lhe deu uma enxada. “Tá ali o seu caderno”, e apontou o roçado. Trabalhando numa escola, Erivelto já frequentou aulas. Mas lhe dói tanto a cabeça que não avança além da escrita do próprio nome. “Conheço algumas letras, mas não sei juntar”, explica. Se soubesse… “Ia deixar de carregar peso, o que faço desde os 7 anos.”
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Ia também escrever “orquídea”, a palavra mais bonita que já ouviu, e ler De Olho em Lampião, a biografia do rei do cangaço, de Isabel Lustosa. Erivelto comprou a obra numa feira de títulos usados (“Gostei da ilustração da capa”) e guarda o volume como um tesouro, em uma bolsa na parede da sala. “Quando sinto falta de casa, digo para um dos filhos: ‘Leia pra mim, leia’ ”, conta, esmagando as mãos nos joelhos e com os olhos querendo marejar.
Na capital, o analfabetismo se concentra na faixa etária acima de 40 anos (cerca de 80%). O Grajaú é o bairro com a maior incidência. Não há estatística sobre a origem dessas pessoas, mas especialistas estimam que mais de 70% delas vieram de fora da cidade. Como se não bastasse o tamanho da metrópole, São Paulo tem outras características que a tornam inóspita para quem não sabe ler e escrever. “A cidade cala o analfabeto e impõe um brutal silêncio a quem não fala a língua dela”, diz o sociólogo José de Souza Martins, professor emérito da USP, autor de A Sociabilidade do Homem Simples.
O especialista tem um caso na própria família para ilustrar a tese. Seu padrasto, analfabeto e incapaz de lidar com São Paulo, tornou-se um homem fechado, tentou matar a família e acabou sendo assassinado a pauladas pela mulher com quem foi morar depois de se separar de sua mãe. “O analfabeto vive em dois mundos: o particular e o dos outros”, diz o professor. “E há poucas coisas mais penosas do que fazer essa travessia diária.”
Disso bem sabe a costureira e diarista aposentada Maria Dalva Miranda, moradora da Vila Mariana. “É viver como um cego sem rumo”, define. “A gente anda por aí marcando a cidade pelos detalhes. O formato de uma janela, o desenho de um portão, a primeira e a última letra do nome de uma rua”, explica. Neste ano, ao completar 76, Dalva decidiu se curar da cegueira. Queria achar na BÍblia as passagens que conhecia só de ouvido e esfregar na cara de um rapaz da igreja. “Como você quer entender Deus se não pode ler a palavra dele?”, ela teve de ouvir. Matriculou-se no Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja) do Cambuci, uma das opções de alfabetização para quem passou dos 15 anos. “Com o pouco que aprendi, parece que o sol até brilha mais forte”, diz.
O Cieja é municipal, foi criado em 2012 e suas dezesseis unidades oferecem aulas em três períodos a quem não terminou o ensino fundamental. Outra de suas alunas é a transgênero Paloma Dourado, cearense de 48 anos, desde os 10 em São Paulo. Ela foi à escola por poucos meses na infância, mas a largou depois de apanhar da professora. “Logo comecei a limpar casa de família para comprar comida e acabei sendo educada pelo Silvio Santos, porque só via TV”, conta.
Até os 47, Paloma não tinha nenhum documento. Achava que, se fosse tirá-los, teria de servir o Exército. As coisas mudaram com o projeto Transcidadania, implantado no ano passado pela prefeitura, que oferece uma bolsa de 924 reais por mês para pessoas trans voltarem a estudar. Em dois anos, foram 193 beneficiários. Agora, Paloma, que passou a vida sem entender porque a margarina vinha ora salgada, ora insossa, até trocou de celular. Está de smartphone com WhatsApp e acha o máximo escrever “boa” e o danado completar com “tarde”. Assim ela aprende mais rápido. “Só saio do colégio quando eu for capaz de pegar um livro, acender o abajur e ler histórias tomando chá. Vai ser tão chique.”
Uma de suas colegas no Cieja é a dona de casa Maria de Lurdes Avelino, 36. Quando chegou a São Paulo, em 1996, vinda de Arara, na Paraíba, não sabia ver as horas “nem no relógio de ponteiro nem no de pilha”. Regulava o dia pela Rádio Top FM, a estação que repetia mais vezes a hora certa, e assim não se perdia na tarefa de buscar os quatro filhos na escola. Tinha sido duro colocá-los lá. “Não fui capaz de saber que na nossa rua tinha um colégio. Os meninos ficaram seis meses sem estudar, até um vizinho me alertar.”
Quando as crianças foram enfim matriculadas, o drama de Lurdinha cresceu. Ela precisava assinar a lista de presença nos encontros de pais. “Eu esperava a reunião acabar, ia até a professora, queimava de vergonha e dizia que não sabia escrever.” Foi essa professora quem lhe falou do Cieja. Era tanta ansiedade que Lurdinha sonhava com o dia em que leria numa carreira só as letras de “passarinho”, para ela uma palavra “grande e difícil”. Hoje, ela trocou o rádio pelas histórias de fada dos livros que os meninos emprestam da biblioteca e tirou RG novo, “assinando o nome de caneta”.
Professora de Lurdinha nos últimos quatro anos, Eliani Andrade define o que se passou: “Ela era uma pessoa que cuidava pouco da aparência e agora está vivendo uma revolução; até dentes novos ela colocou”. Segundo Eliani, o maior desafio na alfabetização de adultos é fazê-los erguer a cabeça. “Eles chegam muito envergonhados, olhando para o sapato, e nosso primeiro trabalho é resgatar sua autoestima. Mostrar que aprenderam a ler o mundo e trazem da vida uma porção de experiências e conhecimentos, e é por aí que vão se alfabetizar”, ela diz, detalhando a linha central do método desenvolvido pelo educador Paulo Freire nos anos 60.
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Portanto, nada de frases vazias que os alunos jamais usarão em seu cotidiano, como a ilustre “vovô viu a uva”. É melhor uma receita de bolo. A professora a escreve na lousa em letras de fôrma e vai ensinando os fonemas, as sílabas, os significados. “Eu já sei até que o certo é ir AO banheiro, e não NO banheiro”, alegra-se, meio encabulada, a diarista Maria Neide dos Santos, 57, estudante do Cieja Perus, na Zona Norte. Até outro dia ela levava duas horas para fazer uma lista de compras para a patroa. Tirava da despensa tudo o que estivesse acabando, espalhava na mesa da cozinha e copiava, letra por letra, o que via nas embalagens. Escolhia as palavras maiores, o que às vezes resultava numa relação cheia de marcas, não de produtos.
Gafes maiores cometia Gerson Santana Silva, o Baiano, 47, empresário e morador de Guarulhos. Dono de oficinas de conserto de máquinas de costura, loja de som automotivo e depósito de bebidas, prosperou antes “de saber juntar ‘lé’ com ‘cré’ ”. Depois escreveu até um livro contando sua saga, Baiano — Empresário, Empreendedor e Analfabeto. “Quer dizer, quem escreveu foi o escritor que eu contratei”, admite. “Mas li as 98 páginas para aprovar a publicação. Demorei uma semana.”
No começo, sem poder lidar com boletos e caixas eletrônicos, guardava dinheiro comprando coisas que pudesse revender depois. Sua agência bancária era um galpão de 70 metros quadrados entupido de máquinas. “Na primeira vez que precisei reforçar o capital de giro fui lá buscar umas tranqueiras para vender, mas metade só serviu para ferro-velho”, ele gargalha.
E na hora de levar as namoradas para jantar, então? Gerson escolhia os restaurantes que tinham cardápio com a imagem dos pratos. “Se não tinha foto, eu esperava a moça pedir e falava para o garçom: ‘Dois, por favor’. A maioria eu nunca soube o que era.” Até que, em 2000, Gerson foi ao Sebrae e lá sugeriram que ele se alfabetizasse. Contratou uma professora particular e vem vindo, devagarzinho. Hoje, consegue comprar tubaína sem receio de confundi-la com cerveja. “Conheço a palavra, não preciso mais procurar a frutinha no rótulo.”
Além do Cieja e do Mova São Paulo, há outras iniciativas de ensino nessa área. Uma delas é a ONG Alfabetização Solidária, criada em 1996 pela antropóloga Ruth Cardoso. São dois locais na capital, que atendem quarenta alunos. Outra é a do Colégio Porto Seguro, que oferece 277 bolsas para adultos, com as aulas frequentadas principalmente por moradores de Paraisópolis.
Esses programas tentam atingir pessoas como Rute Ribeiro Garcia, 64. Numa manhã de uma quarta-feira de outubro, abraçada a três sacolas num banco do Poupatempo Itaquera, na Zona Leste, ela persegue com os olhos aflitos o marido, Vicente, que perambula por ali pedindo informações para tirar uma carteira de ônibus intermunicipal. Os dois são de Salesópolis, ambos trabalhadores rurais aposentados. Ela não lê, não escreve e conhece apenas alguns números. “Vicente me ensinou que duas notas de 50 fazem 100, que é tudo o que eu preciso gastar no mês”, diz.
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Ele é alfabetizado. “Tirei diploma do Mobral quando era moço.” Mas Rute, acometida por uma febre tifoide na infância, perdeu os cabelos e abandonou a escola porque não aguentava ser tão caçoada. Nem a professora perdoava. Rute tinha só 7 anos. Ela explica que não é bem vergonha o que sente por “ter ficado assim ruim com as letras”. É medo. “Já me perdi demais, tomo ônibus trocado, desço no ponto errado, não reconheço o lugar e vai me atacando o coração. A polícia acaba me trazendo para casa.”
Ela aprendeu que no celular tem o próprio número, só não sabe encontrá-lo. “O senhor pode pegar e procurar. Eu confio, tenho que confiar em todo mundo.” Então chega Vicente, derrotado. Não é no Poupatempo que se consegue a carteirinha. Os dois partem. Quando caem naquela muvuca de CPTM-Estação-Shopping-Arena-Corinthians-Itaquera-Palmeiras-Barra-Funda-Bilheteria-Embarque-Preferencial-Saída-Destino… ô, meu Deus, me ajuda…, Rute para. Ela ajeita as sacolas no ombro, olha em volta com os olhos ainda mais aflitos. E dá a mão ao Vicente para seguir andando.