Nova estrela dos palcos: Verónica Valenttino estreia musical da Broadway
Primeira mulher trans a ganhar o Prêmio Shell de melhor atriz, a artista acumula trabalhos no teatro e na televisão
“Você não duraria / Nem ao menos dez minutos / Se estivesse em minha pele / Pelas ruas da cidade”, canta Verónica Valenttino no papel da ativista travesti Brenda Lee, acompanhada de outras atrizes trans, em cena do musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas.
O espetáculo de Zé Henrique de Paula, que estreou na capital paulista em 2022, fez com que Verónica fosse a primeira mulher trans a ganhar o título de melhor atriz no Prêmio Shell 2023.
Com recém-completados 40 anos, a artista acaba de ser anunciada no elenco de Priscilla, a Rainha do Deserto, musical de enorme sucesso na Broadway e nos cinemas cuja segunda versão brasileira estreia em 7 de junho no Teatro Bradesco.
Ela vai interpretar Bernadette Bassenger, uma das protagonistas que, na trama, viaja em um ônibus pelo deserto da Austrália para fazer shows com seus amigos Anthony e Adam, que são drag queens.
O desafio é duplo: além de estrear em um musical, Verónica será a primeira mulher trans a encarnar a personagem, que foi vivida nos cinemas pelo inglês Terence Stamp.
“Tanto no filme, que deu origem ao espetáculo, quanto nas outras versões teatrais pelo mundo, a Bernadette foi interpretada por homens cisgêneros. Estou mergulhada, é uma honra fazer uma figura tão icônica para a comunidade LGBTQIAPN+”, diz.
Ela dividirá a ribalta com Reynaldo Gianecchini, a atriz trans Wallie Ruy, com quem se revezará no papel, e Diego Martins, ator que conheceu ao fazer uma pequena participação no último episódio da novela da Globo Terra e Paixão (2023), que foi ao ar em janeiro.
Nascida em Fortaleza, no Ceará, Verónica subiu pela primeira vez em um palco aos 4 anos deidade. Ela cantava na igreja evangélica com outras seis irmãs.
“Meu pai morreu enquanto minha mãe estava grávida de mim, então ela buscou refúgio na igreja. Eu vivia em uma bolha que me limitava”, lembra.
A libertação veio com o teatro. Aos 21 anos, abandonou os cultos e entrou no curso de artes cênicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).
Seu primeiro trabalho na área foi Cabaré da Dama, adaptação do texto Dama da Noite, de Caio Fernando Abreu, pelo coletivo As Travestidas, liderado pelo ator cearense Silvero Pereira.
Em cena, estavam retratadas as angústias de uma drag queen em busca do amor. “Ele queria homenagear as travestis e as drags. Então, antes do monólogo, fazíamos um show. Foi um sucesso absoluto no Ceará”, conta.
“Brinco que nasci no porão do Theatro José de Alencar, onde fizemos o espetáculo, porque foi ali que entendi que a Verónica não era apenas uma personagem”.
No coletivo também surgiu seu primeiro grande projeto musical, a banda Verónica Decide Morrer, que, até o seu término, em 2019, circulou por vários festivais do Brasil, inclusive a Virada Cultural.
Ela se diverte ao lembrar do primeiro show, em Acopiara, no interior do Ceará. “Imagina uma travesti cantando rock’n’roll em cima de um caminhão em frente à igreja matriz de uma cidadezinha do sertão”, conta.
Foram os projetos da banda que a trouxeram a São Paulo, em 2015, onde acabou por consolidar sua carreira de atriz, atuando em peças de grupos independentes e de diretores conhecidos, como Georgette Fadel.
O sucesso veio, porém, com o espetáculo sobre Brenda Lee (1948-1996), pernambucana que criou, na década de 80, a primeira casa de apoio para pessoas com HIV do país, no Bixiga.
Ela foi assassinada aos 48 anos, por um homem que havia lhe aplicado um golpe financeiro. “Esse papel foi o mais precioso que minha arte alcançou até agora. Minha ‘trancestralidade’ já sofreu demais, foi para a rua demais. Então ser uma travesti que trabalha com teatro, que tem outras possibilidades, é muito potente”, afirma.
Depois de entrar no rol das estrelas do teatro musical brasileiro, foram surgindo convites para atuar na televisão, no cinema e em outras peças. No final do ano passado, Verónica protagonizou Teoria King Kong, adaptação da obra feminista de mesmo nome, que teve sessões no Rio e em São Paulo.
Em fevereiro, ela foi a versão feminina do Rei Duncan, governante assassinado por Macbeth na obra de Shakespeare, em adaptação de Eric Lenate na capital.
Ainda este ano, a atriz poderá ser vista em Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente, série da HBO sobre a epidemia de aids no Brasil.
Publicado em VEJA São Paulo de 8 de março 2024, edição nº 2883