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Valter Hugo Mãe: “Não se faria arte se ela não fosse útil à humanidade”

Autor português veio à Mostra Internacional de Cinema para lançar a adaptação de O Filho de Mil Homens e um documentário sobre seu processo de escrita

Por Laura Pereira Lima
7 nov 2025, 08h45
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Valter Hugo Mãe (Roberto Setton/Divulgação)
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Valter Hugo Mãe, 54, cruzou o Oceano Atlântico para vir à Mostra Internacional de Cinema, encerrada no último dia 30. O escritor foi, talvez, a grande estrela do evento: seu livro, O Filho de Mil Homens, ganhou uma adaptação cinematográfica pelas mãos do brasileiro Daniel Rezende, que estreou na mostra junto com De Lugar Nenhum, documentário do português Miguel Gonçalves Mendes sobre seu processo de escrita.

Hugo Mãe também assina o cartaz oficial da mostra. “O povo veio para competir, mostrar filmes, mas eu vim sobretudo para estar em festa”, brinca. Ele aproveitou a visita para reabastecer suas estantes com literatura brasileira e confessou que costuma levar mais de 100 livros daqui para Portugal — haja taxa de sobrepeso. “Levo na mão, na mala, na mochila, às vezes debaixo do chapéu. E, se for preciso, entalo na calça”, diverte-se.

Fã desde criança da cultura brasileira por influência das irmãs, ávidas consumidoras de Roberto Carlos e novelas nacionais, o escritor se delicia com a música, a literatura e a arte do Brasil — e não dispensa um pulo no Masp sempre que vem a São Paulo. Foi lá, aliás, onde conversou com a Vejinha sobre sua participação na mostra e seu ofício literário.

Qual foi sua participação no filme O Filho de Mil Homens?

Não me envolvi em nada. Achei que a melhor garantia que eu poderia dar para contribuir para o sucesso do filme era eu ficar longe, porque a minha cabeça é literária. Adoro cinema e eu teria muitas ideias, mas provavelmente haveriam de ser todas bobas. Então, achei que devia deixar que o filme fosse feito por quem sabe fazer. Minha contribuição foi deixar ir embora.

O que achou de o filme ter direção e elenco brasileiros?

Acho ótimo. O Filho de Mil Homens tem uma intenção de universalidade profunda. Por isso, o livro passa em um lugar que não é muito preciso, não tem rigor de local nem tempo. Então, ela facilmente pode ser uma história brasileira e a forma como eles adaptaram é muito inteligente e muito simples.

Ele foi pré-selecionado para concorrer ao Oscar. Você está otimista?

Sim. Acho que tem de ser selecionado, tem de ser candidato e tem de ganhar. Se não ganhar, o povo está bobo. Está todo mundo errado. E não estou falando em causa própria, porque não fiz nada no filme. Então é uma opinião muito isenta (risos).

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O que achou do convite para fazer o cartaz oficial da mostra?

Me convidaram dizendo que o pôster já foi feito pelo Martin Scorsese (cineasta americano). E eu penso assim: “Como é que eu posso recusar fazer parte de uma galeria em que Martin Scorsese está presente?”. Gosto muito de desenhar, mas não sou um artista plástico. Sou verdadeiramente aquilo que se chama amador, porque faço por amor. Mas não tenho escola nenhuma, não tenho conceitos, não tenho estratégias. Eu fico muito vaidoso que o pôster seja feito por mim, é sobretudo uma forma divertida de participar do evento.

Você também está com outro filme na mostra.

Sim. O Miguel Gonçalves Mendes terminou agora um documentário sobre meu processo de escrita do livro A Desumanização. Miguel acompanhou-me durante muitos anos, e a gente filmou em muitos lugares, Brasil, Islândia, Japão, Colômbia, Portugal… Esse documentário é muito bonito para mim, porque pela primeira vez eu posso regressar não só ao livro, mas ao tempo em que as ideias para o livro surgiam, e consigo ver no filme aquelas epifanias em que algumas soluções aparecem. É um privilégio ser filmado durante tantos anos em tantas viagens, mas também tem um lado difícil. É como se nossa vida real virasse uma ficção e nós fôssemos personagens.

E como é seu processo de escrita?

Trabalho 24 horas por dia. Em todos os lugares onde eu estou, independentemente da hora e do hemisfério, estou sempre conectado com a obra que estou escrevendo. Em todas as visitas ao Masp, vejo meu livro em algum canto, um centímetro do Monet ou uma figura do Portinari que já não é do Portinari, porque eu “roubei”. Aliás, a coisa mais maravilhosa das viagens é a gente roubar tudo, nesse sentido de qualquer coisa nos inspirar. Eu escrevo usando a vida toda. É meio abusado, mas chego a São Paulo e penso que a cidade está trabalhando para mim, que ela existe inteira para minha obra.

Existe uma conexão entre os lusófonos? Ler uma coisa que é escrita em português, mesmo que seja em um português um pouco diferente, aproxima o leitor da obra?

Acho que sim. Também acho que quando você traduz, você faz uma espécie de higienização das diferenças. Porque se você traduz do japonês, você vai ler aquilo no português do Brasil, por exemplo, e vai ter a sensação de uma naturalidade que você não vai conseguir num livro escrito por um português ou por um angolano. É mais fácil você estranhar um autor português do que um japonês. É um paradoxo.

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O que acha de edições que adaptam o português de Portugal para o português brasileiro?

Acho horrível. Não aceito. Porque eu leio Clarice Lispector, por exemplo, e eu entendo o que ela deixa entender, porque ela também não deixa entender tudo. Você tem que convidar as pessoas a frequentarem a sua própria língua e permitir que ela seja ampliada.

Seu último livro, Educação da Tristeza, faz um relato pessoal sobre o luto. O que acha do uso de IA para criar clones digitais da pessoa perdida?

Acho que a inteligência artificial vai servir para muita coisa boa e vai criar muita patologia também. A sensação que eu tenho é que as pessoas estão sempre buscando uma maneira mais fácil de lidar com aquilo que é difícil. E por vezes há coisas que não têm qualquer tipo de solução, como a morte. A única solução para mim é lidar com isso de uma forma adulta, lúcida, aceitando a tristeza, mas procurando fazer com que ela não vire uma doença. Essa tristeza é um direito nosso. As pessoas olham para a inteligência artificial como se ela pudesse ser um absoluto e colocam-se, elas mesmas, na posição de uma criança ingênua. Então, eu acho que essas estratégias vão dar todas erradas, e vão criar muita perturbação e vão aumentar muito o sofrimento.

A literatura é uma boa estratégia para lidar com o luto?

Sim. Por mais que a gente debata que a arte não tem função, não se faria a arte se ela não fosse útil à humanidade, se ela não desempenhasse um papel que é intrínseco, que é humano. Em tudo o que ela faz, seja levá-lo à felicidade ou a uma certa miséria de pensamento, ela é humanizadora.

É possível separar o autor da obra?

Há um fanatismo em se dizer que o autor é uma figura morta diante da obra. Eu acho isso muito chato. Sei que podemos fruir das obras sem saber nada dos autores, até porque existem pinturas anônimas incríveis, mas, se pudermos ter acesso ao autor, isso produz um fascínio que não é absolutamente inútil à obra. Até porque não acredito que as pessoas façam obras que não tenham que ver consigo mesmas. Em última análise, é impossível escapar da autobiografia. Tudo decorre da experiência de estarmos no mundo e de termos e de sermos a carne do poema.

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Publicado em VEJA São Paulo de 7 de novembro de 2025, edição nº2969.

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