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Ocupação Maria Bethânia reflete a grandeza da artista baiana

A exposição, em cartaz em São Paulo até junho, homenageia os 60 anos de carreira da cantora com concepção singular criada por Bia Lessa

Por Tomás Novaes
22 mar 2024, 06h00

“É para você me conhecer melhor que esse espaço foi criado”, diz Maria Bethânia, 77, ao final do vídeo que apresenta a exposição que leva seu nome, em cartaz no Itaú Cultural.

A cantora baiana, que completa seis décadas de carreira, é a grande homenageada da 62ª edição da mostra Ocupação — projeto criado em 2009 para revisitar o legado de grandes nomes da cultura brasileira —, exibida em dois andares do edifício na Avenida Paulista.

Assinada pelo Núcleo de Curadorias e Programação Artística, liderado por Galiana Brasil, e pela diretora Bia Lessa, essa é, talvez, a mais distinta mostra da série.

“Essa exposição traz uma transformação no sentido e na forma de fazer, o que tem muito a ver com a própria poética da Bia. A curadoria andou junto com a nossa equipe, mas ela foi a guia”, explica Galiana, 48.

Desta vez, o esperado percurso cronológico de fotos e textos nas paredes dá lugar a imagens suspensas em posição horizontal por contrapesos de sacos plásticos com água e terra.

No chão, são refletidas frases escritas detrás das fotografias, estas que passeiam pela vida de Bethânia, sem o compromisso de seguir uma linha do tempo.

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“Guimarães Rosa fala uma coisa que é linda: a cronologia não importa, o que importa é o que está atrás das coisas. Com a cronologia, você vai entender tudo, mas não vai estar próximo da coisa. Nós somos múltiplos, um pedaço de mim que está falando com você agora tem 5 anos de idade e 90 ao mesmo tempo. Eu realmente acredito muito mais no que está por trás das datas”, diz Bia, 65.

A exposição também marca o vigésimo ano de parceria entre a diretora e o ícone da MPB. Bia assina a cenografia dos shows de Bethânia desde a turnê Brasileirinho, de 2004 — e também vai colaborar no aguardado show Caetano & Bethânia, que estreia no segundo semestre no Rio de Janeiro e passará por cinco capitais antes de chegar a São Paulo, em dezembro.

“Quem nos apresentou foi Violeta Arraes, nos conhecemos há muito tempo. O que faço não é uma direção, é uma colaboração de trabalhos e da própria vida. Algo que leio e mando para ela, outra coisa que estou fazendo e ela dá um palpite… Temos algumas pessoas que são pilares das nossas vidas, com quem você estabelece uma conexão, e entre nós existe essa troca”, conta a paulistana.

Diferentemente do trabalho de palco, a mostra é sobretudo um olhar da diretora sobre a cantora, e, por isso, a homenageada não participou ativamente da concepção, nem acompanhou o processo de montagem. “O Itaú Cultural tinha o desejo de fazer essa ocupação. Entraram em contato com Bethânia e ela pediu para que eu estivesse à frente, do ponto de vista curatorial e artístico. Temos muita confiança. Eu falei para ela mais ou menos o que havia pensado, e ela disse: ‘Confio em você, faça!’”.

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A primeira sala, no térreo, reúne 98 fotografias, cada uma com uma frase refletida no piso, da própria cantora ou de autores presentes em sua carreira, como Waly Salomão e Fernando Pessoa. O público pode transitar como quiser, cortando caminhos e andando entre os cabos de aço. Os sacos plásticos que sustentam as fotografias representam a água e a terra de Santo Amaro, cidade natal da artista.

“O que eu mais gosto é que ali você tem uma noção da importância da coletividade na educação do Caetano e da Bethânia. A casa é aberta, as festas são para todo mundo, e, com as fotos horizontais e penduradas, a plateia precisa dialogar, senão um bate no outro. Dentro daquele espaço, que inverte um pouco o céu e a terra com as palavras no chão, você entende o coletivo”, esclarece a diretora.

Uma das efemérides que acompanham a exposição são os 60 anos do espetáculo Nós, por Exemplo, um dos primeiros passos da carreira da baiana, que ganhou projeção nacional ao substituir Nara Leão no show Opinião, em fevereiro de 1965.

O ambiente sociocultural no qual surgiu Maria Bethânia é o foco da primeira sala da exposição. “Em Santo Amaro, você está na igreja com música em latim, órgão, e, quando sai, encontra luzes de show, todo mundo dançando funk, beijando na boca, tudo junto e misturado. Não é um sagrado autoritário, é um sagrado que dialoga com o mistério da vida. O espaço do térreo (do Itaú Cultural) é difícil para caramba. Tem a recepção, o bar, a entrada para o auditório… Mas, quando criei, pensei que é um pouco a praça de Santo Amaro”, completa a diretora.

Ao subir a escada, o público se depara com dois bordados expostos na parede e uma lista de nomes iluminados no teto, que abrem o caminho para mais uma parte imersiva da exposição. O ambiente escuro, rodeado por água no chão e telas nas paredes, exibe, em looping, uma série de vídeos de acervo, depoimentos e outros registros, com duração total de oitenta minutos.

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A segunda sala, no 1º andar: instalação audiovisual (Leo Martins/Veja SP)

“A sala é tecnológica e, ao mesmo tempo, o conteúdo é tabaroa, popular, samba de roda. É uma das características de Caetano e Bethânia: ter um pé muito profundo na tradição e uma antena para o futuro”, diz Bia.

Com possibilidade de assistir à instalação sentado ou em pé, os vídeos incluem falas de poetas, escritores e compositores com quemBethânia possui profunda conexão, como Sophia de Mello Breyner, Mia Couto, Ferreira Gullar e Clarice Lispector.

Um dos momentos mais bonitos é o registro da artista cantando Um Índio, música de Caetano Veloso, envolta por imagens da Via Láctea. Na escada que conecta os dois ambientes, outros elementos integram a expografia.

“Coloquei um vento para que as pessoas, ao subirem a escada, sintam como se o prédio fosse derrubado e a vida natural entrasse naquele lugar. É como se, de alguma forma, o espectador passasse a ser também objeto da exposição”, explica Bia.

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Sem apresentar respostas ou definições, a mostra está à altura da grandeza da figura de Bethânia, ao iluminar sua vida e obra com a subjetividade inerente à artista.

“Espero que as pessoas sejam to – cadas ou pelo discurso, ou pela intensidade, ou pelo entendimento de como a tradição e o futuro são duas coisas interligadas”, resume Bia.

Segundo ela, sua concepção passa longe de simplesmente encapsular Bethânia em dois andares de uma exposição. “É impossível. O intuito é exatamente o oposto: fazer ela babar, sair dali, e não conter. O volume alto, os fragmentos, as músicas interrompidas, você não dá conta do todo. É como se você sugerisse algo, mas não completasse”, explica.

“Gosto muito da ideia de ser uma ocupação, porque eu acho que, de fato, a Bethânia ocupa. Ela ocupa as palavras. Não há como você passar por ela sem se sentir ocupada, quer você goste, quer não”, completa a diretora e parceira artística.

Itaú Cultural. Avenida Paulista, 149, ☎ 2168-1777. Ter. a sáb., 11h/20h; dom., 11h/19h. Até 9/6. Grátis. itaucultural.org.br. ■

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Publicado em VEJA São Paulo de 22 de março de 2024, edição nº 2885

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