Antes de conhecer o mar eu já havia morrido nele muitas vezes, com Dorival Caymmi: “É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar”. Já havia velejado dezenas de vezes no navio negreiro de Castro Alves, que corria “à flor dos mares como roçam na vaga as andorinhas…” Já havia, com Casimiro de Abreu, imaginado o “furor insano”, “o dorso altivo” que “sacudia a branca espuma para o céu sereno”. Já havia, com Camões, cruzado mares “nunca dantes navegados”. Já me havia perdido no mar com o grego Ulisses, entre ilhas, gigantes e sereias.
Mar de verdade só vi adulto.
Marinheiros amam o mar — mas voltam para casa, terra firme. O amor pelo mar é como o amor por certas mulheres: a gente precisa de descanso. Os descobridores, os piratas, os aventureiros, os albatrozes, todos quiseram chegar a algum lugar, terra à vista, e voltar, que o mar não é lugar de ficar, é um meio de chegar. Em terra é que estão os lugares, água de beber, chão firme, banho, fruta fresca, comida, praia, abraço.
Até a época dos Descobrimentos não se sabia o que havia adiante no mar, tudo era hipótese. Quantos não voltaram para contar? E, quando não se volta, não há descoberta, só aventura e desventura. Ficam as lendas com seus paraísos intocados. Tudo era mistério e abismo.
Depois de descobertos os mundos novos, o mar virou rua de comércio, estrada, rota para troca de bens e de gentes. Gentes vieram e foram, por bem e por mal, para o bem e para o mal.
Quando não está irritado em tsunamis, ressacas e marés, o mar se oferece à vista liso como um ventre feminino, em leve respiro, bom de ver. É o melhor momento para tentarmos uma relação. Há temerários que gostam de desafiá-lo quando turbulento equilibrando-se em pranchas, mas é forma perigosa de amor.
Homem montanhês, caprichei nos modos de me enturmar com o mar, tentar chegar. Muitas vezes não deu certo, ele até quis me matar, um dia. Não guardei mágoa, só perdi a confiança. Pé atrás é como eu me entendo com o mar, desde então.
A praia é o lugar onde ficamos de costas para o mundo que criamos, para as nossas construções bizarras, a nossa vida absurda, a estridência das nossas cidades, e ficamos de frente para a nossa origem, nosso primeiro lugar, nosso lar imemorial, nosso para sempre perdido habitat.
De Copacabana à Côte d’Azur, foram cinquenta anos de praias de nomes sonoros, por si ensolarados. Daquela Co pa cabana ainda princesinha do mar, capital federal das pernas gulosamente olhadas por aqueles meninos dos anos 50, dos maiôs comportados, até a Côte d’Azur com sua impressionante capacidade de combinar praias, comidas — a famosa cuisine du soleil —, vinhos, iates, artistas, milionários, história, gentileza, paisagem e seios nus.
Outro dia falo das praias; hoje falo do mar, inesgotável tema de poetas, pintores, fotógrafos. O mar que abre o livro do Gênesis e fecha as epopeias gregas.
Mar mesmo é um só, planetário, ao qual damos vários nomes. Terras é que são muitas, e muitos os povos e os jeitos que eles têm de ver o mar, de lidar com ele. A paisagem marinha depende de terras, sem elas o mar é igual demais, não tem partes, não tem onde, ou tem, e é um não lugar: alto-mar. Não se pode captar. Em alto-mar se está nele como um feto: à mercê. Temos de recortar o mar em pedaços para estar com ele, para desenvolver uma relação pessoal. Mar se conhece pelas beiradas, a que damos nomes e mapas. Até os animais marinhos têm seu pedaço na costa, sua morada, sua terra no sentido de quase pátria, seu torrão, sua praia submersa.
Quem liga tudo, irmana tudo, homens, mulheres, lugares, falares, sabores, cores, sensualidade, prazeres, é o mar. Vem chegando o verão, vamos a ele.
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