Acho misterioso uma economia galgar o posto de sexta maior do mundo, à frente da inglesa, da russa, da canadense, sem ter troco. Mas no Brasil conseguimos realizar essa façanha. Pensei nisso na semana passada ao entrar na Starbucks do Shopping Center 3, aquele dos cinemas Bristol, próximo à esquina da Rua Augusta com a Avenida Paulista. Ia de metrô, pela Linha Amarela, da Estação Pinheiros até um evento do Sesc no bairro do Bom Retiro, o das noivas, no qual o antropólogo Roberto DaMatta discutiria diferenças culturais entre os grandes países das Américas.
+ Leia os blogs de VEJINHA.COM
Mas parei no caminho, que ninguém é de ferro. Queria dar uma passadinha na Livraria Cultura do Conjunto Nacional e tomar um café na Starbucks. Pedi o de sempre: um expresso “duplo” no sensacional copo de papel deles. Apresentei, sem prestar a devida atenção, uma nota de 50. O cafezinho da Starbucks é bom, mas não é barato. O “doppio” sai por 3,80 reais. A moça, que, para meu divertimento, vestia óculos vermelhos e iluminados em formato de estrela com o pisca-pisca ligado, questionou se eu não tinha “mais trocado”.
Essa pergunta já me tirou do sério. É vergonhoso da minha parte, reconheço. Mas em outros momentos da vida perdi as estribeiras e respondi com rispidez, para não dizer aos berros, que quem tinha de ter troco era o comerciante. Fui mau, admito. Mas melhorei. Juro. A psicoterapia ajudou, acredito, tal como o avançar dos anos. Nesse caso o que me surpreendeu foi o fato de uma cadeia de lojas americana pedir minha colaboração com a questão do troco.
Nunca vi faltar troco nos Estados Unidos. É uma das qualidades do país. E há, nas dezenas de milhares de Starbucks mundo afora, um acordo tácito: você vai pagar caro, mas tudo será de primeira qualidade, delicioso, bem pensado e até mesmo “verde”. “Nosso café é sustentável” é a mensagem. Se não me engano, ele é plantado na sombra até. A moça dos óculos divertidos havia quebrado o nosso acordo. Como aquilo poderia ser sustentável, considerei cá com meus botões, se nem troco tinha?
A resposta está em um dos melhores livros das últimas décadas sobre a economia brasileira. Chama-se História do Brasil com Empreendedores. Foi escrito pelo meu amigo Jorge Caldeira, ou Cafu, autor de Mauá, entre outros best-sellers, e membro da Academia Paulista de Letras. Saiu no fim de 2009. No capítulo “O fiado dos pobres”, Cafu explica como o Brasil conseguiu realizar a proeza de se desenvolver, durante a colônia, sem dinheiro. Ele destaca o papel do que chama de “moeda imaginária” e do fio do bigode. Escreve: “O fiado ganhou uma importância imensa na formação brasileira”.
O resultado disso é que todos, produtores, compradores, comerciantes e trabalhadores, foram obrigados a manter relações cordiais. O capital no Brasil se acumulou com base nas relações sociais. A amizade era necessária para garantir os empréstimos. O Brasil poderia não ter muito dinheiro, e menos moeda, mas sobrava “capital social”. Até hoje é assim. O estudo de Cafu explica muito do país. A falta de troco é resolvida socialmente. É uma ação entre amigos. Nesse caso, os óculos cômicos, uma prática importada com sucesso dos EUA, contribuíram para um fecho feliz da nossa transação.
Dei um sorriso à moça. Procurei na carteira uma nota de menor valor e ganhei não só o café como um sorriso. O nome moderno disso é “jeitinho”. É uma especialidade brasileira. Em termos técnicos, significa a aplicação intensiva de capital social para a resolução de problemas de todo tipo. É uma das vantagens competitivas do país. Não sei se dá para exportar. Talvez através das chamadas redes sociais.
e-mail: matthew@abril.com.br