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Leia trecho do livro sobre últimos dias de vida de Gilberto Dimenstein

Obra póstuma escrita com Anna Penido, Os Últimos Melhores Dias da Minha Vida celebra o amor à vida redescoberto em São Paulo

Por Helena Galante Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 27 Maio 2024, 17h15 - Publicado em 30 out 2020, 06h00
Dimenstein para Anna: “Agradeço por ter conhecido esta cumplicidade” (Vitor Barão/Divulgação)
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“Você está com câncer.” Foi essa frase, escutada num sonho, que despertou Gilberto Dimenstein. Da confirmação do diagnóstico de câncer no pâncreas à visceralidade inescapável do tratamento, o jornalista e escritor experimentou profundos questionamentos e transformações: “Tive a clareza de que não poderia ir embora com aquele déficit emocional. A partir de então, o câncer se tornou a chance de eu matar o antigo Gilberto Dimenstein e fazer nascer uma versão melhor de mim mesmo”. Esse e outros depoimentos, gravados pela esposa, Anna Penido, deram origem a Os Últimos Melhores Dias da Minha Vida (Editora Record, R$ 34,90), que chega às livrarias na próxima terça (3). “Compreendi que o grande experimento científico a que você se submetia não era o médico, mas o antropológico. E o seu sonho premonitório nos deu tempo para viver intensamente todas as aventuras que aquela experiência humana pôde nos proporcionar”, escreve Anna numa emocionante carta ao marido. Entre os autoproclamados “dias de taturana”, “dias de borboleta”, “dias de cobaia” e muitos outros dias intensos descritos na publicação, há os “dias na Vila Madalena”, bairro onde Dimenstein pedalou sua bicicleta enquanto pôde e se despediu da vida no dia 29 de maio deste ano. Abaixo, um trecho adaptado do livro que celebra seu amor à São Paulo e aos singelos prazeres que a proximidade da finitude revelou.

***

Quem mora na Vila Madalena — e é bairrista como eu — costuma dizer, sem falsa modéstia, que as melhores coisas do bairro são também as melhores coisas do mundo. O bolo de laranja que comi em uma das madrugadas de corrente de orações foi comprado na Doce de Laura, parada obrigatória quando voltávamos das sessões de quimioterapia. Também visitava constantemente A Queijaria, que vendia iguarias incríveis, produzidas pelos melhores queijeiros de norte a sul do Brasil.

O bairro também é habitado por inúmeros profissionais que trabalham com processos de cura, como psicanalistas, psicólogos, massoterapeutas, professores de ioga, médicos homeopatas, antroposóficos, aiurvedas. Quando fiquei doente, bastava sair às ruas para receber uma infinidade de dicas sobre tratamentos alternativos, compartilhadas com uma convicção impressionante.

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As esquinas da Vila costumavam me reservar grandes surpresas. No cruzamento das ruas Simpatia e Harmonia, encontrei uma menina de olhos brilhantes que me disse de supetão: “Quero que você escreva o livro da minha vida”. Achei aquilo muito estranho, mas ela falava com tanta confiança que parei para escutar. Chamava-se Esmeralda e participava de um programa da Cidade Escola Aprendiz. Tinha vivido na rua por muito tempo, na região da Praça da Sé. Usou drogas, traficou, roubou, aquele desastre. No entanto, tinha uma inteligência extraordinária. Decidi ajudá-la a escrever sua própria história. Sugeri que ela contasse como fez para sobreviver. Assim nasceu o livro Esmeralda: Por Que Não Dancei.

Durante muitos anos, passava o dia inteiro subindo e descendo as ladeiras do bairro, onde descobri muitas pedras preciosas. Depois dos 60 anos, tive de trocar a vida de andarilho pela de ciclista. Eu já estava em processo de quimioterapia quando passei na frente da Pixel Bike Shop e deparei com uma verdadeira Ferrari de duas rodas. Fiquei na dúvida sobre se eu teria tempo suficiente para usufruir daquela maravilha, mas achei que merecia o presente. Que delícia era pedalar por aqueles morros como se estivesse andando em uma via plana.

Há alguns anos, criamos um movimento para iluminar e impedir a circulação de carros no Beco do Batman, até então utilizado como via de passagem e estacionamento. No início, os grafiteiros usavam a área clandestinamente. Como dava para o fundo das casas, eles conseguiam pintar sem ser repreendidos. Com o tempo, os grafites foram ficando cada vez mais sofisticados e transformaram o espaço em uma verdadeira galeria de arte a céu aberto. Eu tinha uma paixão enorme por aquela resistência colorida na cidade cinza.

No início do câncer, a galeria Choque Cultural, referência em arte urbana, virou meu segundo refúgio. Eu tinha lá uma poltrona vermelha comprada em um antiquário, na qual me refestelava para viajar naquele turbilhão de traços e cores. Quando voltava para casa pedalando a minha bicicleta turbinada, prestava cada vez mais atenção nos pedestres, nos mosaicos, nos grafites, na música de rua, no meu cotidiano extraordinário.

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Publicado em VEJA São Paulo de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711.

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