“Quero desesperadamente ser maior do que eu sou”, diz Guilherme Arantes
Com novos sonhos aos 70 anos, o músico paulistano rejeita a alcunha de “arquiteto do pop”, denuncia o etarismo e busca reconhecimento no alto escalão da MPB
Parece que, para Guiherme Arantes, 70, o melhor da vida ainda vai começar.
Vivendo entre Salvador e Ávila, na Espanha, o cantor e compositor paulistano compartilhou seus sonhos e planos em entrevista à Vejinha. “Estou prestes a lançar músicas muito importantes para a MPB”, conta.
Com agenda lotada pelo Brasil, o grande parceiro do artista na estrada está sendo o livro Verdade Tropical, uma espécie de autobiografia de Caetano Veloso — e que tem tudo a ver com as suas aspirações para a nova década de vida. “Quero ser reconhecido entre os notáveis da música brasileira. Acho que tenho potência para trabalhar com os grandes”, afirma.
Criado em Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo, o músico se apresenta na cidade no dia 2 de dezembro, no Tokio Marine Hall.
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Você já escreveu que, nos anos 80, se considerava um outsider por não ser guitarrista, roqueiro e, também, não ser carioca. O que significou, para a sua carreira, ser paulistano?
O Rio era uma capital em contexto de cultura e música, e São Paulo era uma capital secundária. Tentar existir no Rio de Janeiro era sempre um desafio para os paulistas da minha geração. Existia um pouco de preconceito contra nós, perguntavam se éramos italianos, por conta do sotaque — mas eu nunca “carioquei” (risos). Me mudei para o Rio em 85, naqueles anos do surgimento do pop rock nacional, com o Circo Voador, a geração Blitz, Lulu Santos, Kid Abelha. Nos anos 90, São Paulo mudou todo esse protagonismo, e voltei. Depois, fui para a Bahia. Enfim, minha vida é eternamente nômade. Morei em Londres, fiquei períodos em Los Angeles, e agora na Espanha. Nos anos do disco Condição Humana (2013), fiz temporada no Bar Brahma que resgatou minha paulistanidade. Foi um divisor de águas na minha vida, foi quando me tornei independente e montei um estúdio, sem produtor nem gravadora.
Você completou 70 anos em julho. Quais os planos para essa nova década de vida?
O plano mais importante é me qualificar na MPB. Foi cravada em mim uma marca muito forte de “arquiteto do pop”, que é um título nobre, mas comprimido no tempo dos anos 80. É uma forma de me deixar engavetado em um período, enquanto os anos 2000 foram muito reconstrutores na minha trajetória. O meu foco é trabalhar pelo pertencimento ao patamar de cima da MPB — onde estão Chico, Gil, Gal, Caetano, Bethânia, Milton, e a geração um pouco posterior, com Alceu, Djavan, Luiz Melodia, Lenine. Chico Buarque é o meu maior ídolo. Agora, aos 70 anos, quero um lugarzinho nesse panteão.
“O meu foco é trabalhar pelo pertencimento ao patamar de cima da MPB, onde estão Chico, Gil, Gal, Caetano, Bethânia, Milton…”
Na sua visão, em que patamar costumam colocar você?
Me interessa muito estudar a formação de opinião no Brasil. Acho que, no meu caso, não cabem alguns adjetivos que são recorrentes, como injustiçado, pouco lembrado e subvalorizado. Pelo contrário, sou muito presente nas rádios, tenho músicas que rodam o país. Não me sinto nada injustiçado, e esse termo, para mim, é odioso. Injustiçado em relação a quem? Esse selo foi colado em Belchior, Taiguara, Johnny Alf, e não é o caso do Guilherme Arantes. Eu escrevo, por exemplo, um comentário sobre a televisão nas minhas redes e vou parar na contracapa do jornal. Então, injustiçado, eu não sou.
Nesse texto que publicou no Facebook, sobre a televisão, você termina escrevendo: “É um tempo muito difícil de se estar vivo. Muito fácil para se estar morto”. O que quis dizer com isso?
Vamos pegar o final da carreira da Gal (Costa). Fazendo shows, lutando para permanecer relevante e sendo abandonada pelo público em geral, devido a um etarismo e a não conseguir mais desempenhar o papel daquela figura deslumbrante. Então ela, quando falece, acaba virando personagem de tributos com mulheres jovens tentando imitá-la, enchendo as casas de show, com altos ingressos. Por isso eu digo que é muito fácil estar morto. A sociedade quer petrificar um personagem e transformá-lo em uma commodity. Já fui abordado por pessoas querendo fazer uma peça sobre a minha vida, com um menino que usa aquele cabelo, que faz aquela cara, que toca Meu Mundo e Nada Mais daquele jeito. É normal, acho que todos sofrem, o etarismo é um fato mundial, é um mundo muito egoico e imagético. Eu acho isso mórbido. No meu caso, consegui uma boa substituição do esplendor físico pelo pensamento e pelo carisma da fala. Nos shows, substituo a eventual depreciação de imagem, de estar gordo e mais velho, fazendo com que o público nem repare que um dia fui bonito, conquistando as pessoas com a minha história e meu conteúdo.
Naquela postagem, você também fez uma crítica à mídia televisiva, dizendo que, atualmente, a pauta é sempre muito focada na polarização. Mas não foi sempre assim?
Sempre. O que ocorre é que a geração da contracultura ajudou muito nessa construção de uma sociedade da opinião. E nós tivemos a geração do Caetano, que é o maior exemplo desse protagonismo opinativo que passou a se tornar obrigatório. Você tem a arte e você tem o memorial descritivo, que é toda a elaboração teórica e sociológica. Se cobra muito que os artistas tenham esse talento que Caetano tem, e isso foi se tornando um vício. O Brasil tem algumas vacas sagradas que servem de comparação eterna — não quero dizer que acho isso injusto, ou que não mereçam a valoração que tem. A nossa luta é melhorar esse ambiente, para ele ser mais oxigenado e, principalmente, para os artistas cantarem, pintarem, atuarem mais, e não serem obrigados a tanto memorial descritivo. O artista tem o que dizer, e a arte dele também tem que dizer por si só.
O que você vê de bom no horizonte da nova música brasileira?
Vejo uma moda no Brasil de novos pianistas, especialmente negros, de grande técnica e sensibilidade. Isso é importante para mim, porque é um instrumento que sempre foi secundário na música brasileira. Houve um período muito longo em que ele foi posto de lado e estamos entrando em uma era em que há uma tendência forte de o piano brasileiro renascer. Zé Manoel, Amaro Freitas, Luiz Otávio, esses meninos são todos muito incríveis.
O que podemos esperar de Guilherme Arantes nos próximos anos?
A frase que eu diria é que o mundo vai me aturar, porque ainda estou com uma centelha de criação que me permite sonhar. Quero fazer ópera, sinfonia, coisas maiores. A minha história não parou, montei meu estúdio na Espanha e me aguardem, porque sou osso duro de roer. Vou entrar em um período de muita produtividade. Não me interessa fazer parceria com Luísa Sonza, com os novos, como outros colegas estão fazendo. Me interessam os grandes, os antigos. Estou indo para trás, porque é assim que vamos resolver a charada da música brasileira para a frente. Quero desesperadamente ser maior do que eu sou.
Publicado em VEJA São Paulo de 24 de novembro de 2023, edição nº 2869