As personagens femininas nas esculturas de Flávio Cerqueira
Cinco obras suas estão em exposição virtual na Galeria Leme; artista já passou por Pinacoteca e Masp
O artista paulista Flávio Cerqueira, de 37 anos, constrói sua fala em um fôlego só, enovelando episódios de sua vida. Esse jeito de estruturar o discurso, de algum modo, orienta sua produção, composta de esculturas de meninos, meninas e mulheres, em bronze. “Eu conto a história do meu pessoal, de gente que esbarrou comigo”, explica Cerqueira, que traz ainda dois pilares da sua pesquisa artística. “Há também narrativas históricas, que abordam temas como educação e racismo, e ficcionais, coisas que eu simplesmente crio, sem ter referência com a realidade”, conta.
Cinco obras suas, como Atalho para a Liberdade (acima; 2019), estão em cartaz na Galeria Leme, na exposição virtual Um Mundo de Cada Vez. “A maioria dos meus personagens são homens. Minha mãe via isso e falava: ‘Quando você vai fazer uma menina?’. Fiquei com essa pergunta na cabeça e, nesta mostra, as esculturas são todas de mulheres.” Para entender a mudança, é preciso colocar em foco dona Floricélia Maria, matriarca baiana que veio para São Paulo com o primogênito na barriga.
“Fiquei a vida toda sendo chamado de ‘bicha’ pelos meus tios, porque minha mãe trabalhava o dia inteiro e eu tinha de cozinhar, lavar as roupas lá em casa”, recorda ele, que dá outra dimensão para essa questão quando fala de onde morava: “Eu cresci no bairro dos Pimentas, em Guarulhos, que é muito perigoso. Lá, ter pai é um luxo. O meu morreu de câncer, mas os outros pais ou sumiram ou tinham sido presos. A maior força das periferias são as mães, as mulheres”.
As obras de Cerqueira também estão nos acervos de museus. Amnésia (2015), que traz um garoto negro derrubando sobre si um balde de tinta branca, integra a coleção do Masp. Antes que Eu Me Esqueça (2013), protagonizada por um menino branco, com traços corporais relacionados à ascendência africana, foi adquirida pela Pinacoteca. De forma curiosa, os dois trabalhos parecem cenas de um mesmo filme. Se o primeiro garoto está em vias de se embranquecer, deixando a história de seus ancestrais de lado, o segundo parece já ter realizado essa operação.
O tom alvo de sua pele, por sua vez, precisa ser examinado com atenção. A textura com ar industrial sugere a artificialidade do processo, que não se dá propriamente na epiderme, mas no vestir, falar, no encrespar ou não do cabelo. Ao final, parece sobrar dessa necessidade de adaptação o olhar do personagem, um tanto perdido, diante do espelho.
Mesmo com a viabilização por financiamento coletivo de um livro, que cataloga sua produção entre 2009 e 2019, com participação em exposições em países como Portugal, África do Sul e Japão, e com obras alcançando valores de até 150 000 reais, Cerqueira mantém os pés no chão e descarta a capa de herói: “Sou dedicado, ‘sangue nos zói’, mas não cheguei aqui sozinho. Tive a ajuda de muitas pessoas”. Uma delas foi a também artista Nazareth Pacheco, que o conheceu nos anos 2000, quando ele dividia sua vida entre a criação das esculturas e o trabalho de montagem de exposições na galeria paulistana Casa Triângulo.
“Desde o início, via-se que o Flávio ia além do saber fazer, ele sempre incluía questões relacionadas à identidade, à memória”, recorda ela. Hoje, quinze anos depois, Nazareth ainda o acompanha, em tom de admiração: “Ele está indo muito bem. Meu conselho agora é continuar, seguir firme”.
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Publicado em VEJA São Paulo de 14 de abril de 2021, edição nº 2733