Sérgio Mamberti lança biografia, ganha documentário sobre sua vida e deve voltar à TV com o famoso personagem do Castelo Rá-Tim-Bum
Aos 82 anos, o ator lançou livro de quase 400 páginas no qual registra e relembra sua trajetória de mais de 60 anos dedicada à cultura e à política
Por um instante, o ator Sérgio Mamberti, de 82 anos, para e fica em silêncio. Seus olhos brilham, cheios de lágrimas, que não deslizam pelo rosto. Ele parece mirar as dezenas de plantas ao redor. O santista, radicado em São Paulo desde 1957, está em sua casa, na Bela Vista, no pedaço do bairro conhecido como Bexiga. É uma construção com ares de Jardins da Babilônia, composta de três pisos, ligados por escadas. Aos poucos, ele retoma a conversa. O tema é Vivian Mehr, atriz, de origem judaica, com quem foi casado por dezesseis anos. Em decorrência de problemas causados por insuficiência cardíaca, a paulistana, de cabelos encaracolados e personalidade dita imprevisível, morreu aos 37 anos, em 1980. Ficou viúvo com três garotos para criar: Eduardo, Carlos e Fabricio.
Agora, Vivinha, como era conhecida, renasce, como uma das personagens que povoam a biografia Sérgio Mamberti: Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc, 388 págs., 98 reais). A publicação, lançada nesta sexta (30), foi escrita pelo ator, junto ao jornalista Dirceu Alves Jr. Tem na orelha um texto do cantor Gilberto Gil, e prólogo, assinado pela atriz Fernanda Montenegro, com quem atuou na peça Alta Sociedade em 2001.
Em 2021, Mamberti tem ainda outros bons motivos para celebrar a vida e a carreira: um documentário sobre sua trajetória, dirigido por Evaldo Mocarzel, começa a ser montado em maio; no segundo semestre, deve rodar uma nova série, na qual volta a interpretar um de seus papéis mais famosos, o Doutor Victor, do Castelo Rá-Tim-Bum, uma produção da TV Cultura. Raios, trovões, como diria o personagem bonachão, haja fôlego.
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A inspiração do artista para passar a limpo sua história veio da mãe, a professora Maria José (1912-1982). “Um dia, ela virou e disse: ‘Seu pai morreu e, de repente, ele acabou. Vou escrever um livro de memórias, quero deixar algo’. Quando me aproximei dos 80 anos, também fui tomado pelo mesmo sentimento. Vi que tinha muita coisa para contar, da minha carreira, vida pessoal e atuação na política.”
Página vai, página vem, o ator, que é também produtor e diretor, não conseguiu avançar. “Em uma live na antiga sede da Editora Abril, no bairro de Pinheiros, tive a chance de conversar com o Mamberti por mais tempo. Fiquei impressionado com as histórias dele”, relembra Alves, que à época era crítico de teatro na VEJA SÃO PAULO.
Logo depois, ele se colocou a postos para tocar a biografia. Os dois se reuniram duas vezes por semana por quatro meses desde junho de 2018, em sessões que duravam, cada uma, quatro horas. “No livro, ele narra sua história em primeira pessoa. Quando fui organizar as informações, tinha em mente um documentário, estruturado num depoimento dele e seguido por imagens”, explica o jornalista, que estreou como autor com a biografia Elias Andreato: a Máscara do Improvável (Humana Letra, 176 págs., 38,70 reais). “As datas dos acontecimentos não aparecem o tempo todo, até porque quis incorporar essa verve fantasiosa que ele nutre. Na sua boca, as situações, por menores que sejam, ganham muitos detalhes e se tornam grandiosas.”
Adentrar na vida de Mamberti é conhecer mais sobre a capital paulista e viver parte do apogeu da região central, nos anos 50. Ele chegou à Pauliceia aos 17 anos, já decidido a ser ator e a ingressar na consagrada Escola de Arte Dramática (EAD). No ilustre Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), hoje desativado, localizado na Rua Major Diogo, na Bela Vista, assistiu às últimas peças protagonizadas por Cacilda Becker (1921-1969), Pega Fogo (1950) e Longa Jornada Noite Adentro (1958).
A quatro minutos de caminhada desse ponto, no Teatro Oficina, na Rua Jaceguai, se encantou com a verve experimental da trupe comandada por Zé Celso Martinez Corrêa. “Passei a respirar a intelectualidade paulistana. Batia ponto na Biblioteca Mário de Andrade, onde conheci Ruth Escobar, que se tornaria uma pessoa fundamental na minha carreira”, detalha ele, no livro.
Com a atriz e produtora fez vários espetáculos e protagonizou com ela a antológica montagem de O Balcão, de Jean Genet, em 1969. Nessa mesma época, na Rua Barão de Itapetininga, o jovem inquieto observava o vaivém: “Eram muitas lojas luxuosas. Os carros, com chofer, paravam na frente delas”.
Em outra via próxima dali, a Marconi, explorava títulos importados na extinta Livraria Jaraguá. Como uma espécie de coroamento dessa fase de descobertas, em 1960, lembra ter avistado os filósofos franceses Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986) na Praça da República. “Não me contive e fui abordar o casal em seu passeio noturno. Recém-chegado de uma missão em Cuba, Sartre convocou a juventude brasileira a assumir seu papel de protagonista na mudança da história. Eu abracei aquele chamado para sempre”, rememora orgulhoso.
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Antes de assistir nas décadas seguintes ao abandono da região central, Mamberti deu vida a um de seus personagens mais impactantes, o faxineiro Veludo, na montagem, em 1967, de Navalha na Carne, peça de Plínio Marcos. Nos anos 90, já consagrado nacionalmente pela atuação na telenovela Vale Tudo (1988), como Eugênio, mordomo de Odete Roitman, interpretada por Beatriz Segall (1926-2018), ele deixaria sua verve empreendedora aflorar.
A menos de uma quadra da Avenida Paulista, ficava o extinto Hotel Crowne Plaza, que tinha um teatro no subsolo. Ele foi convidado a gerir a programação. Durante o processo de captação de recursos com patrocinadores, bateu de frente com o confisco do Plano Collor. Inquieto com os frutos que a proposta podia dar no cenário cultural, insistiu, mesmo com um orçamento reduzido. Seu instinto não falhou.
O Cult Crowne, nome do espaço alternativo, se tornou uma referência na noite paulistana. Num concurso promovido por ele para jovens cantores, contou com ninguém menos que Cássia Eller. Pouco? Não para Mamberti, que no final dos anos 90 abriu, com sócios, o restaurante Domani, em frente ao Parque Trianon, nos Jardins. Dividiam seus dias e noites, ainda com os filhos, o companheiro Ednaldo Torquato, com quem foi casado por 37 anos, e trabalhos no palco e na TV. Tanta atividade se deve a sua personalidade elétrica, mas também à realidade da profissão. “A televisão abriu um nicho de mercado em que a remuneração é muito superior à economia do teatro. Contratos milionários, contudo, são para poucos.”
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“Mamberti é também artista plástico. Em 2019, fizemos uma exposição na minha galeria com as colagens que ele produz. Foi um sucesso, vendemos bem. Ele é igualmente ótimo cantor”, garante a galerista Regina Boni, de 78 anos, amiga do ator desde os anos 70, época em que ele ostentava madeixas longas e se aproximou da cultura hippie. “Ele viveu a época do desbunde, tomou mais de sessenta ácidos”, complementa Eduardo Mocarzel, que transformará a trajetória do artista em uma série para a Sesc TV e um documentário longa-metragem, ainda sem previsão de data de lançamento.
Nos filmes, Mocarzel volta a Santos para reconstruir a infância do artista, povoada pela amizade com uma vizinha ilustre, a escritora Patrícia Rehder Galvão (1910-1962), a Pagu. O também ator Cláudio Mamberti, irmão de Sérgio, aparece ali, companheiro de tarefas domésticas e, mais tarde, parceiro na vida teatral e na militância política no Partido dos Trabalhadores (PT).
Cláudio, que morreu em 2001, não o veria liderar pastas no Ministério da Cultura, nos dois mandatos de Lula e na primeira gestão de Dilma Rousseff. Algo estranho para quem o conhece apenas como Doutor Victor, mas natural para quem sabe de sua receita de longevidade: “O que me alimenta é a cultura e o engajamento político. Não perco a crença na utopia”.
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Publicado em VEJA São Paulo de 05 de maio de 2021, edição nº 2736