Provence à viva força
Na fadiga das subidas e na alegria das descidas, pode-se conhecer, de bicicleta, uma das regiões mais saborosas e cheirosas do mundo
“Não tenha pressa e não perca o almoço.” Quando embarquei rumo ao sul da França, fui decidida a levar a sério dois conselhos do publicitário eescritor inglês Peter Mayle, autor do best-seller Um Ano na Provence. Desacelerar e não pular nenhuma refeição pode parecer trivial, mas não para uma urbanoide convicta como eu. Havia, no entanto, um desafio maior para uma urbanoide convicta relativamente sedentária: pedalar 230 quilômetros em cinco dias. A proposta era conhecer os vales de Luberon sobre duas rodas e, nas horas vagas, comer, beber e dormir muito bem. Aumentei a frequência na academia de duas para três vezes por semana quando resolvi encarar a aventura, dois meses antes do embarque. Com a convicção de uma leonina, tinha certeza de que iria ser moleza, apesar de a minha amizade com a bicicleta ter se desfeito lá atrás, talvez aos 13, 14 anos. O.k., beeeem lá atrás. Desdenhei dos amigos que tentaram me alertar com comparações do tipo: “Já parou para pensar que 230 quilômetrostros é a distância entre São Paulo e Ubatuba?”. Não, não queria parar para pensar. Aliás, quanto mais falavam, mais eu me convencia de que arrasaria nos vilarejos situados entre as praias da Côte d’Azur e os Alpes Suíços — tranquilidade amparada, confesso, pela infraestrutura que a agência de viagem garantia proporcionar (uma van atrás do grupo para o caso de alguma desistência). Afinal, como foi o meu desempenho? Calma lá. Peter Mayle não disse sem pressa?
Chegando a Paris, pegamos um TGV para Marselha, num agradável trajeto de cerca de três horas pelos campos floridos. O guia aguardava o grupo de quatro pessoas (no máximo são doze participantes) na estação de trem e de lá seguimos de carro para Mane, uma cidade com pouco mais de 1 000 habitantes. No caminho até chegar ao hotel, o Relais & Châteaux Le Couvent des Minimes, muitas apostas de quem seria o primeiro a se fatigar e pedir o socorro da tal van. Sem conhecer o potencial dos “adversários” e já de olho numa subida aqui, outra ali, eu me contive no tom das brincadeiras.
Check-in feito, colchão aprovado e tentados pelo spa by L’Occitane instalado na construção de 1613 que acabáramos de conhecer, fomos fazer os ajustes dos capacetes e das bicicletas de 21 marchas. Recebemos a missão para o dia seguinte: 30 quilômetros de pedal, ida e volta de Mane a Lurs, passando por Forcalquier. O céu azul, o ventinho gelado e o silêncio (no início, perturbador) faziam jus a um dia típico provençal de fim de abril. Não resistimos a experimentar o spa antes de nos sentar à mesa do restaurante Le Cloître e saborear o delicado menu degustação do jantar preparado pelo chef Philippe Guérin. Algumas taças de vinho depois, e o tema da conversa recaía nas apostas de quem seria o primeiro nocauteado pelo cansaço no nosso Tour de France particular.
No dia seguinte, com aquelas horrendas bermudas acolchoadas usadas pelos ciclistas, garrafinhas abastecidas de água e iPod engatilhado, era hora de mostrar a que viéramos. Mas não daquela vez. Uma chuva inexplicável tomou conta da paisagem. Apenas os dois homens do grupo toparam encarar o frio e a água no rosto. Estava tão insuportável que só foi possível concluir o caminho de ida de 15 quilômetros até Lurs. O tempo fechado, no entanto, não tirou o encanto dessa vila labiríntica com casas de pedra. Mas só os gatos testemunharam a nossa chegada. Nenhum dos 400 habitantes resolveu dar as caras. A promessa meteorológica de que na manhã seguinte o amarelo de Van Gogh voltaria a reinar nos animou. E de fato voltou. Dali para a frente, só pedalamos sob um céu de azul genuíno.
O roteiro original contemplava a saída do hotel, parada para o almoço e volta para o hotel. Tudo de bicicleta. No segundo dia, depois de sentirmos o peso de pedalar por 27 quilômetros de Mane a Manosque e almoçarmos feito reis (dei razão ao Peter Mayle diante do cordeiro assado com molho de queijo de cabra), resolvemos que faríamos os trajetos de volta sempre de carro. Ou seja, a meta encolheu dos 230 quilômetros iniciais para 115. O peso da “derrota” foi atenuado pela decisão coletiva. Parei de amaldiçoar as subidas quando a lógica do passeio ficou clara para mim: quanto maior o sacrifício, mais bonita a paisagem conquistada. Sem falar que as subidas pressupunham descidas fantásticas, nas quais era possível ver o velocímetro registrar irresponsáveis e deliciosos 50 quilômetros por hora, com o vento penetrando pelos ossos.
O terceiro dia teve um gostinho literalmente especial. Não só pelos 42 quilômetros de pedal, quase sem pausa, mas pelo saboroso piquenique preparado pelo eficiente guia em Banon, com queijos que só de lembrar me fazem salivar, entre eles um cremoso de leite cru de cabra que leva o nome da cidade. O menu engordativo tinha ainda tapenade, figos, baguetes e doces tomates cultivados na região. Para brindar a conquista “pedaço a peda-ço, à viva força; na fadiga das subidas, na alegriadas descidas” (essa eu emprestei do romance Os Mandarins, de Simone de Beauvoir), o encorpado rosé Tavel. Santé!
De lá seguimos motorizados para o Relais & Châteaux La Coquillade, em Gargas, onde passaríamos as próximas três noites. Ao longo do passeio já tinha me curvado a cenários respeitáveis, mas esse hotel, no topo de uma montanha, cercado de vinhedos por todos os lados, impressionou. Mais ainda quando deparei com a espaçosa banheira branca da suíte. Tudo o que coxas e panturrilhas exploradas feito escravas mereciam. Fui além. Provei a massagem que prometia cuidar do “esprit”, apesar de estar à procura mesmo de algo que trouxesse o meu “corps” de volta. A massagem teve lá a sua utilidade, mas achei prudente recorrer a um relaxante muscular com medo de perder a competição (a essa altura comigo mesma) e ir parar na van no dia seguinte, o que aconteceu com um dos participantes. Felizmente aguentei, e conhecemos Oppède-le-Vieux, Ménerbes, Lacoste e Bonnieux em 27 quilômetros de pedalada.
Aqui vale a pena estacionar a bicicleta para falar dessas quatro cidades. A minúscula Oppède-le-Vieux chama atenção pelas casas dos séculos XV eX VI talhadas na rocha e suas ruas de paralelepípedo. Em Ménerbes, 6 quilômetros adiante, demos sorte de ter chegado no dia da feira de rua, digamos que o acontecimento social dessas cidades. Barracas de torrone ao lado das de queijo, ao lado das de sabonetes. Tudo muito… provençal. Lacoste, outra pitoresca aldeia medieval de 500 habitantes, é cheia de galerias de arte, que se descobrem ao subir e descer suas vielas. Em 2000, o estilista Pierre Cardin comprou o castelo que pertenceu ao Marquês de Sade, reformou-o e transformou-o em casa de férias. O lugar é ainda palco de um festival de verão que ocorre em julho e agosto. De lá avistávamos Bonnieux, aonde chegamos depois de suadinhos 7 quilômetros. Ali fica o duas-estrelas Michelin La Bastide de Cape-longue. Outro restaurante famoso na constelação gastronômica da região (também com duas) é o L’Oustau de Baumanière, dos chefs Jean-André Charial e Sylvestre Wahid, em Les Baux-de-Pro-vence. Bom, nem precisa dizer que foi um brinde atrás do outro. Ora com a garrafinha de água da bike, ora com vinhos típicos. Nossa permanente intenção de fazer uma refeição leve desaparecia logo na chegada do couvert. Comíamos sem pressa, sem culpa. Nós nos sentíamos merecedores depois da carga diária de exercícios.
Fazia parte do nosso caprichado roteiro um voo de balão partindo de Roussillon. Foi interessante ver do alto o vilarejo todo na cor ocre, com cânions e lindos desfiladeiros em seus arredores. Mas depois de 45 minutos já estávamos ligeiramente entediados da repetitiva paisagem — ou talvez mal acostumados a tê-la ao alcance das mãos —, sensação exclusiva de quem conhece os lugares de bicicleta. De Roussillon partimos para Gordes. Três rápidos passeios que valeram a pena, nesta ordem: Abadia de Sénanque, com seus campos de lavanda (há uma livraria bacana lá), a Village des Bories, um conjunto preservado de um tipo de construção que remonta aos primórdios da ocupação da região, e o jardim do hospital psiquiátrico em Saint-Rémy de Provence, onde Van Gogh passou seus últimos dias. Réplicas de quadros do artista estão localizadas nos espaços em que ele os retratou. Muito interessante.
Além do pintor holandês, Cézanne, Picasso e Matisse também foram atraídos pelas luzes e cores vibrantes das paisagens da Provence. Paixão completamente explicável. Como ficar indiferente a campos imensos de rosas vermelhas? Sem falar nos de lavandas, girassóis e violetas. Parava para um clique toda vez que me surpreendia com um, ainda que isso significasse assumir a posição de lanterninha do grupo. Na verdade, fui a última a chegar em praticamente todos os trajetos. Mas dei uma banana à van e, no meu ritmo, completei 115 quilômetros em quatro dias. Os 115 quilômetros mais fatigantes e memoráveis da minha história. Sem pressa. Sem perder os almoços.