“Um bom trabalho artístico fala por si próprio”, diz Anish Kapoor
Artista indo-britânico assina 19 obras para a abertura da Casa Bradesco, espaço cultural próximo à Avenida Paulista
Com 4 000 metros de área expositiva, a Casa Bradesco inaugura neste domingo (15) com a mostra Inflamação, do artista indo-britânico Anish Kapoor, 70. Parte do complexo Cidade Matarazzo, que já acomoda o Hotel Rosewood e o clube Soho House, o novo espaço cultural fica próximo à Avenida Paulista e abre as portas com dezenove obras do artista, quatro delas inéditas.
“Mudamos a estrutura do prédio em função das dinâmicas que Anish apresenta nessas obras”, explica o curador Marcello Dantas. “A ‘pele’ ainda é de um edifício antigo, mas o esqueleto todo é novo.”
Essa é apenas a primeira etapa do projeto, outras inaugurações estão planejadas para ocorrer até 2026. “Teremos quatro pavimentos, com dois ambientes de criação, área infantil com oficinas e, na parte de baixo, o anfiteatro com capacidade para até 1 700 pessoas, que será palco de grandes shows”, adianta Nathália Garcia, diretora de marketing do Bradesco. Confira a seguir a entrevista com o artista, feita por vídeo. Ele falou de Veneza.
Qual é o conceito da mostra e o que as pessoas vão encontrar por lá?
O trabalho principal se chama Blinded by Eyes, Butchered by Birth (Cegado pelos Olhos, Massacrado pelo Nascimento, em tradução livre), um título sombrio para uma obra de certa forma frágil. É um inflável bem grande que se pressiona contra a arquitetura, como um inchaço, uma inflamação. E ao redor dela estão várias outras obras que dialogam com essa peça central.
Qual é o significado dessa obra?
Gosto da ideia de ocupar os dois andares, tocando o chão e com o restante se pronunciando pelos pilares. Mas um bom trabalho artístico diz por si próprio seu significado e se situa entre o que você entende ou não, talvez atraindo a pergunta: por que é arte?
E por que é arte?
Porque recusa conexões lineares. Ela não tem propósito, é um objeto. E, no entanto, está de certa forma brincando com o espaço, com a ideia do que significa fazer um objeto artístico e o que significa vir ao mundo se propondo como arte. Acho que o espectador entra nesta questão: o que isso diz sobre meu corpo? Meu corpo é assim? Isso é bom ou ruim? Eu gosto, odeio?
Como é o seu processo criativo?
Eu vou trabalhar no estúdio todos os dias, nunca com uma ideia na cabeça. Vou dar um exemplo: comecei a fazer obras com todo tipo de pigmentos e um dia no estúdio decidi usar um bowl. Criei um grande furo para o bowl na parede e pintei com o azul da Prússia, bem escuro. Quando secou, me surpreendi ao ver que não era um bowl pintado de azul, mas um espaço escuro, como se o objeto tivesse se preenchido de escuridão. O que é isso e de onde veio? Eu só esbarrei na ideia, sem ter sido algo pensado. O verdadeiro trabalho do artista é permitir esse processo associativo livre, aberto e lúdico.
O que o levou a optar por esculturas e grandes obras ao longo da carreira?
Eu queria ser artista desde uns 13 anos, mas cresci na Índia e essa não parecia ser uma possibilidade. Então fui estudar engenharia, durei seis meses e decidi que não era para mim. Meus pais não ficaram muito felizes. Aos 17, tomei a decisão de que, sim, eu seria artista, e fui estudar em Londres. A escala faz parte da linguagem da escultura e, seja qual for o tamanho, você a associa à sua relação com seu corpo. O que importa é como essa escala se relaciona com algo poético, incompreensível.
Se não tivesse se tornado artista, o que acha que estaria fazendo hoje?
Ah, nem me pergunte! (risos) Eu gostaria de ter paciência e força interna para ser poeta. Como artista, posso usar um pedaço de gesso ou azulejos, enquanto o poeta tem a dificuldade de trabalhar com as palavras, todas com significado. E um bom poeta deve ir além desse significado.
Quais são os temas que seu trabalho aborda com mais frequência?
Acho que me interesso, é claro, por questões existenciais sobre ser e não ser. O pintor (americano) Jackson Pollock, por exemplo, pega bastante tinta, espalha no chão e chega em algo corpóreo e bastante masculino. Mas pendurado na parede se torna cósmico. O que ele fez? Uma alquimia básica para transformar um material em outro, uma condição de ser em outra. E isso é algo maravilhoso que nós seres humanos somos capazes de fazer: depositar num material alguma importância psíquica.
Alguns dos seus seguidores ainda o criticam por ter comprado o licenciamento e uso exclusivo do Vantablack (material promovido como “o tom de preto mais preto do mundo”). Como você responde?
Eu tento não responder, principalmente porque é uma estupidez. Tem esse cara, cujo nome não me lembro, que tem falado disso por anos e anos e fez sua carreira a partir disso (o artista britânico Stuart Semple ficou conhecido como um dos maiores críticos do monopólio de Kapoor sobre o material). A questão é que é um mal-entendido básico. Esse material não é uma tinta, mas uma cobertura de superfície altamente tecnológica, feita em altas temperaturas. Eu li no jornal sobre alguém que descobriu o material mais preto do universo e mandei uma carta perguntando se podíamos trabalhar juntos. Esse material era central para o que eu estava tentando fazer. O mais incrível nele é que, quando você o coloca em uma dobra, a dobra some. Ele mexe com a inter-relação entre corpo, visão e, neste caso, ciência, cor, imagem e não imagem. É o objeto invisível. Ele leva o objeto além do ser.
Publicado em VEJA São Paulo de 13 de setembro de 2024, edição nº 2910