O fã obcecado por Ana Hickmann não é (necessariamente) um psicopata
Sempre que ocorre um caso de violência praticada por motivação passional sou procurado por jornalistas para dizer se a causa do ato seria uma possível doença mental do agressor. Essa é uma discussão complexa que começa por definir o que é uma doença mental mas, a despeito dessa questão e do fato de que não […]
Sempre que ocorre um caso de violência praticada por motivação passional sou procurado por jornalistas para dizer se a causa do ato seria uma possível doença mental do agressor. Essa é uma discussão complexa que começa por definir o que é uma doença mental mas, a despeito dessa questão e do fato de que não conheço o agressor de Ana Hickmann, o que o levou a fazer reféns a apresentadora e seus acompanhantes com o uso de uma arma de fogo não foi necessariamente nenhuma doença mental.
O plano de fundo dessa história que terminou com o ferimento de uma das pessoas que acompanhavam Ana Hickmann e com a trágica morte do agressor é sua frustração por não ter seu amor por ela correspondido.
Alguém pode me alertar: “Mas não é uma absurda perda de contato com a realidade ele se apaixonar por uma figura pública? E isso não é comportamento de um psicopata?”.
+ Devo acreditar em testes de personalidade e horóscopo?
A resposta mais imediata é sim. De fato, há casos de crimes passionais nos quais a patologia mental foi sim fator determinante para a ocorrência da violência. Transtornos de personalidade, esquizofrenia e outros tipos de psicose podem contribuir para que uma pessoa pratique um ato violento no curso de uma crise, diferente de quando a ação é premeditada.
Agora… Ampliemos um pouco a visão sobre esse tipo de situação. Quantos homens não transformam em um ato de violência a sua frustração diante da negativa de uma mulher? Mulheres são alvo de violência verbal e física diariamente nos mais diferentes ambientes. Nossa cultura machista ensina o homem a entender que seu desejo está acima da identidade e da autonomia da mulher e que ela, sendo bela, recatada e do lar, tem a função social de satisfazer seu desejo enquanto macho que é.
Mas mulher também não comete crime passional? Comete, mas muito mais raramente. Estudos diversos mostram que na avassaladora maioria dos casos foi um homem que matou uma mulher. Nos casos de relação íntima entre vítima e agressor, a mulher é vítima em 70% dos casos.
Como anda fora de moda usar um tacape para escolher a mulher que deseja, os homens (e a sociedade) lançam mão de eufemismos (“Não deixo faltar nada para minha mulher!” etc) na tentativa de recuperar o terreno perdido em função das conquistas recentes das mulheres.
Assim como é difícil para parte das pessoas ricas engolirem a presença de ascendentes socioeconômicos em ambientes antes exclusivos de sua casta (aeroportos, Europa, Miami, Governo…) bem como seu protagonismo, também é difícil para homens machistas engolirem negativas de uma mulher.
É por isso que depois da recusa de uma mulher ocorrem muitas vezes atos de violência verbal (“Tá se achando, mina!”, “Você nem tá com essa bola toda!”, “Sua vagabunda!”…), de ameaça (“Se você não for minha não será de mais ninguém!”, “Vou jogar aquele vídeo na rede!”…) e de violência física. A violência física pode ser pegar no braço, puxar, bloquear a passagem, beijar forçosamente, estuprar uma garota alcoolizada ou não, bater, torturar, prender, esfaquear, atirar etc.
Ainda que logo se descubra que o agressor que não admitiu o “não” de Ana Hickmann era portador de uma doença mental, sua assim chamada doença não é uma entidade autônoma dentro dele mas sim um processo reforçado por nossa sociedade. Costuma-se dar menor importância a esse contexto cultural em comportamentos extremos, mas isso é um equívoco.
Muito se conquistou em termos de direitos das mulheres mas ainda temos muito o que caminhar. E não caminharemos se não tivermos coragem de assumir que um homem que pratica violência contra uma mulher é, antes de qualquer coisa, um homem que pratica violência contra uma mulher, seja ele esquizofrênico, deprimido ou o rei da balada.