Argumentar demais com os filhos compromete a educação
Muitos pais têm dificuldade em ajustar o ponto ideal da autoridade; a família não é uma democracia
Percebo que os pais de alguns de meus pacientes adolescentes têm uma dificuldade cada vez mais comum em ajustar o ponto ideal da autoridade. Se ainda há pais que insistem em atitudes autoritárias na criação dos filhos, percebo que há também muitos que, ao se esforçarem para não serem autoritários, acabam sendo exageradamente permissivos e condescendentes.
Os primeiros se assustam quando os filhos passam a se afastar afetivamente deles. Os últimos se surpreendem com a agressividade e o desrespeito que emergem #apesar-de-tanto-amor-e-diálogo.
A clínica permite ao terapeuta um lugar privilegiado a partir do qual pode testemunhar uma coleção de situações que exemplificam a dificuldade de pais que querem ser democráticos na criação dos filhos. Lembro-me de um pai explicando ao filho de 2 anos como funcionava a máquina de café da sala de espera, na expectativa de que seu filho pudesse compreender a razão pela qual ele não deveria mexer no equipamento.
Ou dos pais de um paciente adolescente tentando convencê-lo da importância de ele ir no primeiro dia de aula na escola nova logo depois de ter sido reprovado. O filho dizia que o dia não era importante pois não teria aula pra valer. Mesmo a coordenação da escola tendo dito aos pais sobre a importância do primeiro dia, eles estavam contemplando todos os argumentos do filho e procurando contra-argumentos que pudessem convencer o filho pela lógica a não faltar. Ainda… o pai que, ao descobrir uma postagem inadequada no Instagram do filho, ameaçou mostrar o print para mim sem se dar conta de que o psicólogo não está acima dos pais na hierarquia (nem ninguém).
Quando um ser humano nasce, ele é completamente dependente dos pais para sobreviver. Exagerando o caso, imaginemos os pais de um recém-nascido tentando convencer com argumentos o bebê a ficar aqui e não ali. Ninguém tem dúvidas de que isso não faz nenhum sentido. Conforme o bebê vai se desenvolvendo, algum grau de autonomia começa a aparecer. Ele escolhe o que segurar na mão, para que direção engatinhar etc. Ainda assim, os pais precisam restringir o campo de autonomia do bebê. Cerquinhas, portas fechadas, objetos ao alto. Nenhuma dessas ações dependem de verbalização.
Um pouco ainda mais adiante, com o desenvolvimento da linguagem, é possível contemplar mais amplamente os desejos da criança (cores, brinquedos, alimentos…) e também comunicar com mais rapidez decisões que são tomadas pelos pais.
Como felizmente temos conseguido avançar na superação do autoritarismo, além dos ganhos essenciais desse processo, parece que temos acumulado alguns efeitos colaterais. Os pais começam a querer justificar absolutamente todas as decisões para os filhos e, mais grave, querem contemplar todas as falas e desejos dos filhos. Pior ainda é o fato de que muitos pais atribuem aos filhos um poder de decisão que eles não podem exercer porque simplesmente não se desenvolveram o suficiente.
A capacidade de escolha é uma habilidade que precisa ser ensinada e treinada paulatinamente. Uma coisa é conceder à criança o direito de escolher o sabor da pizza que a família pedirá para entregar em casa. Outra bem diferente é a criança decidir se vai ou não à escola. É neste ponto que muitos pais se perdem. Tratam seus filhos (crianças ou adolescentes) como se fossem adultos. Não percebem que o que está controlando o comportamento do filho que não quer ir à escola não é o fato (?) de que a aula não será importante mas sim algo que ele simplesmente deseja naquele momento mais do que ir à aula. Pode ser o videogame, um encontro com alguém, um programa de TV ou até a esquiva de algo aversivo no contexto da escola.
As decisões
Embora seja importante dar audiência à reivindicação do filho, é importante que a decisão seja totalmente dos pais. E esta decisão não precisa (e nem deve!!) ser anunciada com agressividade.
As decisões devem ser anunciadas aos filhos com convicção e afeto, mesmo que o filho seja ouvido. Hoje mesmo o pai de um paciente adolescente me escreveu para relatar a aplicação da estratégia. Ele havia dito ao filho que eles teriam uma conversa importante depois da escola. Mas o filho chegou da escola acompanhado da namorada, o que inviabilizaria a conversa programada.
O pai, então, explicou ao filho que a namorada dele deveria voltar para a casa dela para que pudessem conversar. O filho se revoltou, disse que queria passar a tarde com a namorada, que ela viajaria por três dias e que eles pretendiam estudar juntos (este um argumento quase digno de convencimento). Habitualmente o que acontecia nesta família em uma situação como essa seria uma longa discussão, muito stress e… a permanência da namorada. Mas dessa vez o pai fez diferente. Ouviu atentamente os argumentos do filho, aos quais respondeu com lucidez, tranquilidade e afeto: “Puxa, filho, eu entendo sua frustração. Mas, como eu já havia dito, nós precisamos ter uma conversa importante agora e por isso sua namorada não poderá ficar.”
Depois de mais alguns protestos, já menos intensos, ele explicou à namorada que não poderia ficar com ela, ela voltou para casa e houve nova onda de protestos. O pai pediu então que o filho fosse tomar banho e comesse para que pudesse relaxar antes da conversa. E finalmente conversaram já com o filho mais calmo.
Interessante que, diferentemente de ocasiões passadas, o filho não ficou de cara fechada para o pai. E esta era a crença do pai a cada enfrentamento. “Ele não vai mais falar comigo.” “Ele deixará de me amar.” “Não quero ser autoritário.” A surpresa do pai ao ver o filho calmo e colaborativo mesmo depois de um acesso de raiva é das coisas mais gratificantes no acompanhamento de famílias em crise.
A criação dos filhos nunca deve ser autoritária mas é bom saber que a família não é uma democracia. As crianças precisam ter voz e vez… mas devem ser preparadas para ter voto. E isso leva anos!