“Centro natural e turístico”, Guarapiranga vive cenário de abandono
Aberta pela antiga Light em 1908, a represa tem 26 quilômetros quadrados e, há exatos 100 anos, projetos para região são prometidos
O cenário de abandono do antigo clube Santapaula, as ruínas de uma obra prima do arquiteto Vilanova Artigas e as dezenas de imóveis vazios à beira da Guarapiranga contrastam com a riqueza da campanha eleitoral por ali. Nem o domingo ensolarado atrai visitantes para o mar paulistano e para os poucos botecos sobreviventes.
Mas há cabos eleitorais bem pagos e pôsteres por todos os lados do vereador Milton Leite, homem forte da Câmara, de Ricardo Nunes, candidato a vice de Bruno Covas, e de Jilmar Tatto, prefeiturável petista. Os vizinhos dizem que os três são muito poderosos na Zona Sul, mas o atraso do antes chamado “centro natural e turístico” da cidade mostra que ter padrinho influente não é tudo.
Aberta pela antiga Light em 1908, a represa tem 26 quilômetros quadrados, ou mais de vinte Ibirapueras, com muitas margens ainda verdes. Há exatos 100 anos, projetos turísticos são prometidos. Com o real derretendo e a vacina que não chega, o paulistano teria muito a ganhar no entorno da Guarapiranga quando tanta gente está impossibilitada de viajar.
O engenheiro britânico Louis Romero Sanson até trouxe areia da praia de Santos para dar origem ao chamado balneário-satélite na década de 30, com casas, comércio, bulevares, hotel e igreja. Sanson, que também participou da criação da Represa Billings e do Aeroporto de Congonhas, contratou o urbanista Alfred Agache para desenhar o bairro entre as duas represas (“Interlagos”) e implantou o autódromo na região.
Imigrantes, como as famílias dos fundadores das cervejarias Brahma e Antarctica, instalaram casarões ali. Um hotel-cassino prometido para o local onde hoje estão as ruínas destas fotos foi projetado no início dos anos 1940, inviabilizado pelas convicções católicas da mulher do presidente Dutra, que proibiu o jogo no país.
Nos anos 1950, o projeto do Grande Hotel Interlagos, elaborado pelo polonês Mieczyslaw Grabowski com treze andares, foi atropelado pela inflação do governo Juscelino, e a obra parou no 4º andar. Foi vendido ao incorporador Adelino Boralli em 1961, que já tinha criado vários clubes e loteamentos no interior, e que pensou para ali o Santapaula Iate Clube (também foi dono do Quitandinha, em Petrópolis).
Boralli contratou o arquiteto Vilanova Artigas para reformar e adaptar o prédio inacabado de quatro andares, desenhar três piscinas (uma delas, com 1 200 metros quadrados e 4 metros de profundidade) e projetar a sede náutica às margens da represa, com garagem para barcos, oficina, posto de combustível e bombas para abastecimento direto, além de um bar com vista marítima. Até um túnel foi criado para ligar clube e embarcadouro sob a avenida, asfaltada pelo próprio empresário (que seria batizada depois de Atlântica e Robert Kennedy, e, hoje, Atlântica de novo). Enquanto isso, a represa recebeu as modalidades náuticas dos Jogos Pan-Americanos realizados em São Paulo em 1963. Tudo caminhava para um grande destino turístico.
Inaugurado no fim de 1965, o clube teve pelo menos uma década de glória, com shows de Roberto Carlos e Agnaldo Rayol, corridas náuticas, dez canchas de boliche, salão de jogos e restaurantes.Na década de 80, a exploração desordenada ao redor da represa, o trajeto cada vez mais caótico e a crise dos clubes sociais varreram o Santapaula. O conjunto está vazio há mais de trinta anos. Tombada desde 2002, a chamada garagem de barcos, marco da obra de Artigas, já tem seu concreto se desfazendo, com as ferragens à mostra, e infiltrações por todos os lados.
Um grupo que atua nos ramos imobiliário e têxtil dono do imóvel conseguiu aprovar em 2010 nas instâncias de patrimônio histórico a adaptação do conjunto em um centro de convenções e hotel, além de um restaurante, projetados pelo arquiteto Mauricio Xavier, do escritório Xavier e Travaglia, que já estariam abertos para a Copa de 2014.
Obedecendo à maldição que cercou os bilionários eventos esportivos da década passada, nada saiu do papel. Diferentes zoneamentos proibiram novos comércios no empreendimento, como “zona estritamente residencial”, com a represa para bem poucos. O hotel poderia ter no máximo cinco andares. O arquiteto já perdeu as contas das reuniões na prefeitura para conseguir aprovar os usos que viabilizariam o investimento milionário para recuperar o complexo.
O bairro foi tombado em 2004 e moradores de mansões sobreviventes admitem que não veem com bons olhos a transformação do patrimônio abandonado em centro hoteleiro e de eventos. A construção de 40 000 metros quadrados é rotineiramente invadida e desocupada, e seus muros, empapelados pelas ricas campanhas eleitorais, viraram ponto de prostituição, como as dezenas de preservativos usados ao redor comprovam.
A estrutura de 70 metros de largura que emoldura a represa em seus vãos horizontais até pediria um projeto arquitetônico mais ousado — as ilustrações aqui revelam um mezanino de vidro com bancos que combinam mais com a de um hotel corporativo qualquer do que com um ícone brutalista às margens de uma represa.
Imagina a beleza que sairia de um Tadao Ando, um Campo Baeza ou um Siza intervindo sutilmente ali? Ainda assim, seria uma enorme transformação para uma área tão carente de empregos e de segurança, com águas poluídas (sem uma pressão política para cuidar delas, que poderia aumentar junto com uma nova frequência), e desperdiçada. Quem sabe passadas as eleições os caciques locais não se mexam para destravar a permanente lentidão com que projetos similares são avaliados na cidade? Investidores também desistem.
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Publicado em VEJA São Paulo de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713
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