Sentado na plateia do Teatro do Sesc Belenzinho, na noite de quinta (19), eu ouvi de um diretor da cena paulistana um comentário que me deixou pensativo. “Entendo e aceito o que você analisou na minha nova peça, mas existe uma generalização ao afirmar que o espetáculo ‘não atinge um equilíbrio capaz de envolver o espectador’”, disse ele, com absoluta gentileza. Respondi que isso era inevitável. “Afinal, na revista, não posso escrever em primeira pessoa”, soltei, na defensiva. “E, como público, sua peça não me envolveu.”
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Ao resenhar um espetáculo, a visão do jornalista – reforçada por uma bagagem que possibilita embasar a análise – está sobreposta e, sendo assim, minha opinião é realmente muito pessoal. É a forma como reagi a tal mensagem. Sempre considerei arrogante um texto jornalístico em primeira pessoa. Nesse post inaugural, porém, vou cair na cilada de escrever dessa forma, já que na internet é permitido ao blogueiro manifestar-se como bem entender. Será? Mas não pretendo que isso seja uma rotina, ok?
Na última semana, o ator e diretor americano Robert Wilson, o Bob, trouxe a São Paulo o espetáculo “A Última Gravação de Krapp” para cinco apresentações. Trata-se um dos maiores nomes do teatro moderno e, há 12 anos, não pisava no palco. Só isso justifica o fato de que os ingressos tenham se esgotado em menos de uma hora. Expectativa lá nas nuvens. Mesmo quem não acompanha tanto teatro pensa que “precisa ver o Bob Wilson”. Afinal, “todo mundo vai ver” ou “será que teremos uma nova chance?”.
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Bob Wilson, 70 anos, é o encenador por excelência. A imagem fala mais que o texto. Cenário, luz e figurino, muitas vezes, têm peso igual ou talvez até superior ao do ator. O irlandês Samuel Beckett, autor de “A Última Gravação de Krapp”, é um dos mestres do absurdo, das longas pausas, de um estilo capaz de reafirmar o quanto está cada vez mais sufocante a realidade. Depois do terceiro sinal e da luz apagada, o barulho de uma tempestade toma conta do Sesc Belenzinho. O protagonista entra em cena. Uma coreografia marcada, gestos milimetricamente pensados e uma luz que faz a cena ser dominada por duas cores: o preto e o branco. Quase 20 minutos e nenhuma palavra. Vem a primeira frase: “caixa três, rolo cinco”. O personagem, na porta dos 70 anos, começa a rebobinar a vida. Ouve fitas gravadas no passado em que registrava seu momento e sua visão de mundo. Três décadas antes, ele esbanjava confiança, sentia-se no auge. Hoje, a plenitude ficou para trás e nada mais de excitante acontecerá.
Melancolia absoluta. Tudo dói. E Bob Wilson tenta fazer graça. A própria maquiagem branca ofusca sua expressão. Claro que o público estava diante do grande esteta. Já é esperado muito efeito, muita cena. Mas até que ponto não seria mais desafiador para o próprio mestre colocar suas rugas e fragilidades a serviço do personagem? Sérgio Britto trouxe a São Paulo o mesmo texto há três anos. Era nítida ali a visão do grande homem de teatro consciente de que estava despedindo-se aos poucos de seu ofício e da própria vida. Para Bob Wilson, “A Última Gravação de Krapp” representa outra coisa. O que será? Falta um pouco mais de alma. Como espectador, louvei a oportunidade de vê-lo ao vivo. Mas não me envolvi. E, pelos aplausos apenas respeitosos, ouso acreditar que boa parte da plateia também não.