Voltamos a ser marionetes, Fause Haten?
Fause Haten acordou cedinho com notícias de Paris. Um amigo o avisou que o Le Monde, o jornal mais respeitado da França, estampou no caderno de estilo uma galeria de imagens do seu desfile de verão 2014. Jornais ingleses, Fause me diz, também deram espaço à coleção, mostrada no Teatro da Faap. Mas para a […]

Fause Haten acordou cedinho com notícias de Paris. Um amigo o avisou que o Le Monde, o jornal mais respeitado da França, estampou no caderno de estilo uma galeria de imagens do seu desfile de verão 2014. Jornais ingleses, Fause me diz, também deram espaço à coleção, mostrada no Teatro da Faap. Mas para a moda nada se compara a sair no Le Monde, que tem como acionista e editor ativo Pierre Bergé, o viúvo e sócio de Yves Saint Laurent.
“Comentei com o Paulo (Borges) que mesmo quando eu desfilei por quatro anos em Milão nunca consegui essa visibilidade”, diz.
Há dez anos, o Brasil era outro, sequer estava no mapa da moda e dos investimentos como agora. Fause não tinha os cabelos platinados, descoloridos há duas coleções por Augusto, do salão do Celso Kamura (Rua da Consolação, 3679, tel. 11 3061-5500). “Acho que não vou conseguir mais deixar de descolorir”, confessa.
As roupas, no entanto, seguem fiéis ao estilo Fause: com “cintura e peito marcado”, como ele define, mesmo quando ele se aventura em volumes mais estranhos.
O que mudou foi o jeito de apresentá-las. O estilista escolheu vestir 19 marionetes com corpetes em formato de coração, saias de bailarina, bordados floridos.
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A apresentação durou 18 minutos — o vaievém de modelos que fez ao longo de 25 anos de carreira duraram entre 5 e 8 minutos. “Foi o desfile mais longo da minha carreira e o que mais mexeu com as sensações do público de um jeito positivo.”

Fause Haten e o alterego de biscuit: marionetes vestidas com roupas românticas (Foto Lenise Pinheiro)
Desde que começou a quebrar as regras do desfile tradicional, Fause já provocou tensão, desconforto e estranhamento, tanto na equipe quanto na plateia. A equipe, ele me conta, não teve coragem de demovê-lo da ideia de cantar, com o rosto todo espelhado, em plena passarela, com medo de uma reação excessivamente crítica de um público excessivamente crítico. “Não penso sobre o que os outros vão pensar ou escrever e esse desfile prova que é preciso correr riscos e romper padrões.” Fause gosta de teatro, da encenação e acredita que desfiles vão além da roupa. “A moda é uma alavanca cíclica do desejo, por isso virou ferramenta de consumo até para lançamentos de prédios e sabão. No desfile, o que eu estou dizendo é que posso realizar o sonho, dar a magia apra a mulher se sentir linda numa festa. Quando ela quiser sonhar, vai pensar em Fause Haten.”
Aqui, ele fala sobre a decisão de colocar bonecas na passarela — e do desejo de fazer as mulheres do século 21 voltarem a ser “mulherzinhas”, só quando quiserem de fato ser marionetes na mão dos homens.
Antes da era das modelos, a moda fez uso de marionetes para fazer o estilo viajar além de Paris. O mesmo aconteceu na Segunda Guerra. De onde veio a ideia?
Depois de mais de vinte anos de entrada da modelo, caminhar até a boca de cena e voltar, a passarela fica chata. Tenho feito o exercício de buscar novas formas de apresentar as coleções — até por respeito à plateia que se cansa depois de trinta apresentações no mesmo formato. Junto com isso, veio o fato de que o ano passado foi turbulento. Fiz três desfiles e não tinha grandes verbas. Uma amiga havia me presenteado com um duende de biscuit, que fica sobre o meu piano. É o trabalho de um artista aqui de São Paulo chamado Guilherme Pires. Um dia pensei que seria incrível reproduzir a roupa em dimensões pequenas. Daí a ideia evoluiu para uma exposição ou talvez uma performance das bonecas em esteiras rolantes. Por fim, no começo de janeiro, pensei nas marionetes.
Você gastou menos com essa apresentação?
Ah, vocês com essas perguntas de valor! Na verdade, gastei quase a mesma coisa. Até porque fiz os vestidos em tamanho real integrarem a cena. Sou uma empresa pequena e tenho um limite para investir. Mas não vou dizer quanto.
Quanto tempo se dedicou à “coleçãozinha”?
Uns dois meses desde a pesquisa de bonequeiros e marioneteiros. Decidi conversar com o Guilherme, que não poderia fazer sozinho. Cheguei, então, ao Virígilo Zago. É dele a estrutura dos bonecos. Entre ele, o Guilherme, que fez a pele de biscuit e os cabelos, e eu, foram várias idas e vindas. E depois dez dias de ensaio. O manipulador precisa criar intimidade com o boneco. Só aí a marionete ganha personalidade. Foi incrível ver isso surgir.
Você não é unanimidade entre os jornalistas de moda. Ao longo dessas décadas de carreira, seu estilo foi descrito como extravagante, exagerado, às vezes mil e uma noites demais para uma fatia da humanidade. Nesse desfile, no entanto, você causou comoção. As marionetes ajudam a “amolecer” os corações de quem senta na primeira fila e convidam a olhar a moda sob outra perspectiva?
Se você olhar as pessoas que frequentam a fashion week, vai saber que elas não vão usar minha roupa. E eu fui o mesmo Fause Haten de sempre. Não me preocupo com o que os outros vão dizer. Já não sei até que ponto a crítica de moda vale, num mundo onde o comprimento da barra da saia já não importa mais e já não existe certo ou errado. Eu tenho a minha cliente e a vida segue.
Nos desfiles de alta costura do passado, saber andar e fazer gestos era mais importante do que ser magrela-raquítica, a atual obsessão da humanidade. Dispensar as modelos é também uma maneira de romper com esse padrão?
Quando me dei conta de que eu poderia escolher a fisionomia das marionetes, decidi que faria um casting com a ajuda do Renato, que trabalha comigo. Escolhemos Gisele (Bündchen), Shalom (Harlow), Kate (Moss)… É um mundo da fantasia. Não sei se compartilho dessa obsessão do culto ao corpo, à magreza e à juventude. Me vejo envelhecer no meu rosto, no meu cabelo, no meu fôlego e não trocaria quem sou hoje pelos meus 18 anos.
É difícil olhar as marionetes sem pensar em como a moda pode transformar mulheres em bonecas. Em O Segundo Sexo, a bíblia das feministas, lançado dois anos depois do New Look, Simone de Beauvoir repudia todos os sinais de “mulherzinha”: das unhas longas à cinturinha de pilão. Você tem um quê do romantismo do velho Christian — e seu desfile, com bustiês de coração, bordados de flor e saias de tutu, fala da “menina que sonha em ser grande”. O que gostaria que as mulheres do século 21 entendessem sobre seu desfile?
Quando pensei em marionetes, pensei em “roupa de boneca”, com bustiê, saia rodada, volume. Só depois achei que seria uma graça um paletó ou um short nesse tamanho. Mas as mulheres já passaram a fase do poder — ombreira, empresária — e hoje ainda tem um lado sexualizado, com peças muito justas e transparências. Nos desfiles, ainda se vê essa agressividade sexual. Mas tenho pensado ultimamente na volta ao romantismo, à feminilidade. É como dar um susto nos homens, que já estão mal acostumados com a mulher que pode ser presidente ou a mulher predadora. Estou mais interessado nessa mulher que hoje pode tudo — atacar um homem, ser presidente —, mas que vai dizer “ah, não sei se você pode chegar até mim”. Vejo essa vertente “mulherzinha” ao meu redor nas coleções de Raf Simons para a Dior e na alta moda de Dolce & Gabbana. Mas ela só é mulherzinha se e quando quiser.
Veja aqui as marionetes usadas pela Dior para a vitrine de Natal na Printemps (não, Fause não conhecia esse material. É, como se diz na moda, o ar dos tempos)
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O que vai fazer com suas 19 novas mini-amigas?
Vou ficar com elas e fazer uma exposição, levá-las para outros lugares. E já estou pensando no próximo desfile. Na verdade, já sei como vou provocar a reação público.