Um vício aplaudido de pé
Carolina Senna discorre sobre a ortorexia, distúrbio silencioso que nasce na busca incessante por uma vida extremamente saudável
Existe um mito no atual mercado de qualidade de vida. Uma ideia que acompanha a turma altamente saudável, onde as palavras fit, treino, suplemento, entre tantas outras, fazem parte do vocabulário diário. Nesses grupos, o modus operandi traz o lema “quanto mais saudável, melhor”. Estariam essas pessoas certas? Em essência, sim.
A adoção de hábitos cada vez mais saudáveis está na base de uma vida melhor. Estudos atuais mostram o impacto do estilo de vida, inclusive em nossa genética, suprimindo genes de potenciais doenças e ativando tantos outros que contribuem para uma vida longeva e de qualidade. O problema reside no distúrbio silencioso, pouco falado, que nasce na busca incessante por uma vida extremamente saudável: a ortorexia.
Assim como a anorexia, a compulsão alimentar e tantos outros distúrbios alimentares, a ortorexia precisa ser compreendida, acolhida e requer tratamento adequado. Pessoas que sofrem de ortorexia em geral trazem um histórico de efeito sanfona e já passaram por diversas dietas. Em determinado ponto da vida, uma situação limítrofe, tal como uma perda ou um problema de saúde grave coloca a pessoa no que ela considera o “prumo”.
Consegue, então, ir abrindo mão inicialmente de algo que lhe fazia mal, como o glúten nosso de cada dia. Depois sai a lactose, o açúcar e alguns cortam o carboidrato por completo. Tem quem adote a balança para pesar alimentos como algo cotidiano. E, neste processo, a pessoa vai abrindo mão de macro e micronutrientes, adotando uma alimentação que ela considera cada vez mais “limpa”.
Em nossa sociedade atual, acompanhamos tantos casos assim com blogueiras e influenciadores fitness, aplaudidos de pé como referência de uma vida equilibrada e feliz. E quem fica do outro lado da telinha do celular se sente inferior. Reles seres humanos incapazes de abrir mão da boa e velha pizza no melhor estilo “sextou” de ser. O que não enxergamos é que essa busca incessante pela comida limpa traz traços de obsessão, similares aos demais distúrbios alimentares. E esconde, numa fachada feliz, uma dor profunda.
Nos meus mais de dez anos de estudos sobre os distúrbios alimentares, identifiquei um padrão comum a todos eles. A relação distorcida com a comida e o corpo é construída como uma fachada, para não se acessar uma dor mais profunda. A pessoa traz um trauma interno, que não precisa ser fruto de uma situação extremamente drástica, podendo ser apenas resultado de uma fase muito difícil da vida, que deixou marcas. E, independente da origem, a dor é intensa e evitada pela pessoa.
A relação com a comida e o corpo vai se tornando problemática até virar uma obsessão. E, por mais desgastante e doloroso, ainda é mais fácil de lidar do que o trauma original. Assim, a pessoa segue com o distúrbio por anos, estando sempre na superfície do que realmente são suas questões. E, no caso da ortorexia, o desafio é ainda maior. Sendo um comportamento tido como referência social, o vício e a obsessão seguem silenciosos e aplaudidos de pé.
Neste cenário, em que seguimos nos pautando pelo externo e trazendo como referências para nossos comportamentos a vida de outras pessoas, com base no poder de influência ou notoriedade delas, a ortorexia nos lembra que não podemos comparar o nosso interior ao Instagram dos outros. Que nem tudo que reluz é ouro. E que na boa e velha moderação, no antigo convite de olhar pra dentro e curar nossas feridas com boas doses de terapia, residam as reais bases de uma vida saudável.
Carolina Senna (@carolasenna) é fundadora do portal Personare. Especialista em saúde integrativa pelo Institute of Integrative Nutrition (NY), estuda as causas e consequências da ansiedade e dos distúrbios alimentares.
A curadoria dos autores convidados para esta seção é feita por Helena Galante. Para sugerir um tema ou autor, escreva para hgalante@abril.com.br.
Publicado em VEJA São Paulo de 19 de julho de 2023, edição nº 2850.