Pinacoteca abre ampla exposição sobre Lygia Clark com obras interativas
Mostra sobre a pintora e escultora contemporânea apresenta todo o seu repertório e é a de maior destaque no ano
Há quem diga que os rumos da arte brasileira foram redefinidos quando Lygia Clark (1920-1988) entrou em cena. Ícone da pintura e da escultura contemporâneas, a artista mineira está prestes a protagonizar um intenso reencontro com o público em São Paulo. A Pinacoteca inaugura no sábado (2) a exposição panorâmica Lygia Clark: Projeto para um Planeta.
Sete galerias da Pina Luz — o prédio tradicional do museu, que ganhou outras sedes nos últimos anos — irão receber mais de 150 obras criadas ao longo de três décadas de carreira de Lygia, como pinturas, trabalhos neoconcretos, experiências arquitetônicas e os projetos interativos em que ela imaginava a arte como uma terapia. “Será a mostra de maior destaque do ano”, afirma Jochen Volz, o diretor da Pinacoteca. “Lygia foi uma figura fundamental que fez a gente repensar nossa compreensão sobre a arte”, ele acredita.
A exibição ocupa o espaço onde estavam expostos os coloridos trabalhos da argentina Marta Minujín, que atraíram mais de 300 000 visitantes, a segunda exposição mais vista da história do museu — atrás apenas da mostra do escultor hiperrealista australiano Ron Mueck, com 402 000 pessoas, em 2015. Em 2023, vale dizer, a Pinacoteca atingiu o maior número anual de visitantes (880 000), em parte devido à inauguração do terceiro prédio da instituição, a Pina Contemporânea, em março.
A expectativa da direção é superar o recorde em 2024, com uma programação composta por dezesseis mostras encabeçadas pela artista mineira. “A exposição de Lygia faz parte de uma linha de pesquisa que viemos desenvolvendo nas últimas décadas sobre artistas mulheres latino-americanas. Tivemos Marta, agora Lygia e, em maio, (a chilena) Cecília Vicuña, grandes pioneiras do continente”, afirma Volz.
A última exposição focada na trajetória de Lygia em São Paulo tinha sido feita pelo Itaú Cultural, em 2014. Para revisitar um repertório tão amplo, a Pinacoteca conta com a colaboração da Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark, gerida pela família da artista. “As ideias dela seguem concretas e pulsantes, influenciando as novas gerações e as que estão por vir”, afirma Eduardo Clark, filho e atual presidente da instituição. “Para nós, a mostra significa reposicionar a instituição na cena cultural brasileira, buscando uma aproximação mais orgânica com os grandes museus do país”, acrescenta o secretário-geral Juliano Werneck.
Dupla de curadoras da exposição, Ana Maria Maia e Pollyana Quintella dedicaram cada sala da Pina Luz a uma proposta diferente desenvolvida pela artista, não necessariamente em linha cronológica. No primeiro ambiente, o visitante é recebido pelos icônicos Bichos, estruturas metálicas dobradiças (foto da página 11). As peças, que marcaram o movimento neoconcretista, são réplicas criadas especialmente para o manuseio do público. “Elas nascem de um desejo de Lygia de que o público ‘ative’ a obra”, explica Ana Maria, que é também curadora-chefe do museu. “Lygia define os Bichos como organismos vivos, que sabem mais de si do que a artista”, ela completa.
Ao redor, é possível observar algumas das primeiras pinturas de Lygia, ainda próximas da arte moderna, respeitando as bordas do quadro e sem as cores industriais, como na série Superfícies Moduladas (1956). A segunda galeria, à esquerda de quem entra, apresenta os Bichos originais — esses, vale alertar, não podem ser tocados.
A sala três é dedicada às pesquisas de Lygia sobre o campo tridimensional, com destaque para a obra Caminhando (1964), divisora de águas na carreira da artista, uma vez que rompeu com a noção de autoria ao convidar o público a cortar uma tira de papel em formato de fita de Moebius — uma faixa retorcida que provoca uma ilusão de ótica. Há também Obras Moles (1964) e Trepantes (1964-65). Nessas, Lygia optou por materiais menos nobres, como a borracha, o que evidencia uma intenção de “popularizar o trabalho e dessacralizar a arte”, como explica Ana Maria.
O viés popular de Lygia não se restringia ao trabalho. Amigo da artista, o crítico e professor de história da arte Paulo Sérgio Duarte, 77, relembra dela como “uma pessoa do povo”. Os dois se conheceram na França, em 1970, e se tornaram próximos. “Ela morava na Avenida Prado Júnior (no Rio de Janeiro), uma via com prostituição assídua”, ele afirma. “Eu ia à casa dela e a gente descia para um bar na avenida. Lá, ela conhecia todas as prostitutas pelo nome verdadeiro, não pelo nome de guerra. Sabia o nome dos filhos, convivia com elas”, diz.
Duarte conta que o objetivo de Lygia era popularizar os Bichos e distribuí-los em praça pública, o que não foi possível porque, bem, as obras passaram a valer centenas de milhares de dólares, dada a relevância da artista no cenário internacional. “Pelo menos, ela conseguiu manter esse princípio até o final da vida por meio da convivência com o povo”, ele diz.
Na quarta galeria, as atenções se voltam para o que a artista chamou de “linha orgânica”. O objetivo era analisar e questionar os limites entre arte e vida, a partir do encontro de dois materiais. Lygia levou a ideia para a pintura ao criar o conceito de “quebra da moldura”, no qual abandonava a finalidade metafórica dos limites de um quadro para usá-lo como instrumento da “conquista do espaço físico real”, ou seja, interligá-lo ao mundo ao redor. Os trabalhos incluem Quebra da Moldura (1954, na foto acima) e Descoberta da Linha Orgânica (1954).
A pesquisa causou a aproximação com a arquitetura, presente na sala seguinte. Nela, a artista investiga mais a fundo as possibilidades de interação entre o público e a estrutura física. Lygia olha para o espaço cotidiano e propõe ideias como a Maquete para Interior Nº 3 (1955), criada em escala humana especialmente para a mostra da Pinacoteca. Além de maquetes e composições, o interesse pela área pôde ser visto em Estruturas de Caixas de Fósforos (1964) e na série Escadas (1948-51), um estudo de linhas e planos.
“Arquivos mostram os diálogos que ela tinha com vários profissionais da arquitetura, como Affonso Eduardo Reidy e Carmen Portinho”, diz a arquiteta e urbanista Sabrina Fontenele, que pesquisa sobre a artista. “Seus relatos pessoais, registrados em diários, demonstram uma franca admiração pela arquitetura e um entendimento da discussão do morar moderno. A escolha de arriscar-se pela arquitetura revelava coragem, inquietação e vontade de transformar tudo ao redor”, ela acrescenta. Segundo a profissional, que também atua na curadoria do Instituto Tomie Ohtake, as aproximações de Lygia no campo ainda são pouco conhecidas e pesquisadas nas faculdades da área. “É uma pena, porque poderiam trazer novas reflexões sobre o corpo e a casa”, acredita.
Essa relação também é explorada nos dois últimos ambientes da mostra. A partir de meados da década de 60, Lygia inicia uma experimentação mais profunda com o corpo e cria os Objetos Relacionais, peças feitas de material simples que oferecem uma experiência sensorial. O primeiro foi Pedra e Ar (1966). Também ganha destaque na mostra a instalação A Casa É o Corpo, criada para a Bienal de Veneza de 1968.
Nessa fase, o interesse da artista se volta à psicoterapia. Por meio das obras, ela acreditava que era possível reconstruir a noção de si mesmo e da interação com os outros. É um método terapêutico que ela chamou de estruturação do self. A mostra reúne trechos de filmes, fotos e documentos sobre a proposta, amadurecida durante a vivência de Lygia em Paris, onde morou entre 70 e 76 e ministrou um curso na Universidade Sorbonne. “É um uso subversivo da psicanálise”, afirma Tania Rivera, psicanalista e professora do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense. “Lygia traz experiências de sofrimento e reconstrução para o centro de sua arte”, ela diz.
Para Tania, a proposta é tão radical e revolucionária que ainda gera estranhamento. “É uma espécie de ‘antitécnica’. É muito difícil utilizá-la na prática”, afirma. Até onde consta, há apenas três “discípulos” do método, os quais a própria artista instruiu em vida, uma em São Paulo (Suely Rolnik) e dois no Rio (Lula Wanderley e Gina Ferreira).
Embora na fase da psicoterapia Lygia sequer se definisse mais como artista, o amigo Paulo Sérgio acredita que aquilo era uma continuação do trabalho artístico dela — e dizia isso a Lygia. “A arte deixa de ser moderna e passa a ser contemporânea a partir das experiências de Lygia Clark”, ele afirma. “Tinha um carinho especial por Lygia. Telefonava e perguntava se podia ir à casa dela. Ela respondia: ‘Vem depois da dor de cabeça’, porque tinha enxaqueca diariamente, normalmente das 15h até as 16h30”, ele rememora. A exposição é completada por uma nova sala de vídeo da Pinacoteca, inaugurada no ano passado, onde será exibido o filme O Mundo de Lygia Clark (1973), de Eduardo Clark.
O filho descreve a mãe como uma figura inquieta. “Lygia foi uma revolucionária em todos os sentidos, mulher livre, desquitada, artista. Nunca se acomodou”, diz. “Como filho e admirador da obra dela, sempre digo que Lygia foi um cometa Halley das artes, que passa de 75 em 75 anos pela Terra. A cada passagem, deixa um rastro de luz e ideias entre os jovens artistas”, ele completa.
Neste ano, a Pinacoteca recebe ainda mostras sobre Cecília Vicuña (16/5 a 15/9), Sallisa Rosa (16/3 a 28/7), José Bento (23/3 a 1/9) e Gervane de Paula (23/3 a 1/9) e outra sobre os 60 anos da ditadura militar no Brasil (6/4 a 18/8).
Edifício Pina Luz. Praça da Luz, 2, ☎ 3324-1000. Acessibilidade. Qua. a seg., 10h/18h. R$ 30,00 (grátis aos sábados). Até 4/8/2024. pinacoteca.org.br.
Publicado em VEJA São Paulo de 1 de março de 2024, edição nº 2882