Memória: Antonio Carlos Marino (1944-2021), dono do Carlino, aberto em 1881
Mais antigo restaurante de São Paulo, pertencia ao empresário desde 1979. Sob seu comando, foi tema da minha primeira crítica gastronômica em 1992
Um restaurante com história, o Carlino perdeu seu proprietário no último dia 26. O empresário Antonio Carlos Marino, de 76 anos, era dono desde 1979 do estabelecimento, onde deu expediente nos cinco anos anteriores. Ele sofria de Alzheimer havia quatro anos e, no fim de 2020, foi detectado um câncer no fígado em estágio avançado.
Quando o restaurateur comprou o Carlino, assumiu uma espécie de lenda viva do centro da cidade. O nome italiano brilhava na fachada de um imóvel na então elegante Avenida Doutor Vieira de Carvalho, mal comparando, uma espécie de mini-Oscar Freire da gula, que concentrava em apenas duas quadras restaurantes como Almanara, Rubaiyat e Galeto’s, além de uma unidade de confeitaria Dulca, da sorveteria italiana Parmalat e da importadora de bebidas e alimentos Casa Ricardo. Pertinho dali, estavam o La Casserole, o Arroz de Ouro e uma filial do Dinho’s Place.
Encontrava-se ali desde 1960, mas a fundação foi muito antes. Acredita-se que a data seja 1881 e originalmente no Largo Paissandu, onde está a Galeria do Rock. Teria sido aberto pelo imigrante italiano Carlo Checchini, quando o Brasil ainda era uma monarquia e ainda se viviam os tempos enodoados pela escravidão. Como curiosidade, vale destacar que no mesmo Paissandu surgiu também o Ponto Chic, aberto por Odilio Cecchini, filho de Carlino. O bar onde foi criado o bauru completa um século em 2022, exatamente como a Semana de Arte Moderna.
Em 2002, o Carlino encerrou as atividades. Nessa época, conversei com Marino, que acreditava que esse fechamento seria temporário. “Voltaremos em breve. Estou à procura de outro ponto. O centro está muito decadente”, disse à época. O retorno se arrastou três anos. E, diferentemente do que seu proprietário imaginou, o Carlino não deixou o centro. Ressurgiu no número 85 da Rua Epitácio Pessoa, vizinho ao extinto Hotel Hilton, onde permanece até hoje. Entre 2010 e 2015, manteve com sócios uma filial em Perdizes.
Marino fazia um pouco de tudo no restaurante. Cuidava do caixa, fechava contas e, em especial, adorava recepcionar a clientela. Bom de prosa, era a gentileza em pessoa. Outro território que gostava era a cozinha, onde dava pitaco e cuidava dos fogões. “A vida dele sempre foi o Carlino”, afirma o filho, Bruno Marino.
Quando estreei na crítica gastronômica, o Carlino foi o tema da minha resenha número 1 (você pode ler o texto no fim do post). Daquela época, além do clássico cabrito à caçadora, destaquei a caprichada porção de lula recheada de frutos do mar servida na companhia de risoto à parmigiana e o bavarese, variação da sobremesa francesa bavarois semelhante a um flã de ovos na companhia de coulis de três frutas frescas – uma dessas caldas poderia ser de mamão-papaia, de longe a melhor.
“Ele elaborou alguns pratos, ensinava as receitas a alguns cozinheiros e ensinou a mim e minha irmã, Bianca, também”, lembra Bruno. Um de seus preparos ainda em cartaz é o maccheroncini ubriacchi. Trata-se de uma massa, em geral penne, com linguiça calabresa ao conhaque e vinhos tinto e branco misturada com molho rosé.
Nos últimos anos, Marino já não passeava pelo salão. “Meu pai trabalhou até três anos atrás. Depois que foi diagnosticado o Alzheimer, a vida dele mudou”, relata Bruno. “No começo, vinha ao restaurante, mas as responsabilidades, tiramos dele. Era como se fosse um lazer para ele: vinha, batia- papo… Se sentia melhor aqui.”
Um resistente do centro, ele teve tempo de assistir à região voltar a ser, pouco a pouco, mais agitada. Bares e restaurantes pipocaram naquele pedaço nos últimos anos, entre eles a lanchonete Hot Pork e a Sorveteria do Centro, que ficam bem em frente ao Carlino.
Reportagem: Saulo Yassuda
Uma cantina diferenciada
Por Arnaldo Lorençato, 8 de julho de 1992
Aos 111 anos de idade, O Carlino continua vivo e bem de saúde. Fundado em 1881 pelo imigrante italiano Carlo Cecchini, o restaurante atravessa as décadas vendo modismos irem e virem. O mais importante é que mantém sua qualidade de cantina diferenciada, procurada por que não aguenta a barulheira dos pieros e sargentos nem os zeros à direita na conta dos massimos e fasanos. Do seu cardápio original, permanecem alguns pratos tradicionais da cozinha Toscana, como o cabrito a caçadora. Com a mudança de endereço (funcionava inicialmente no Largo Paissandu) e de donos, o menu foi modificado. A partir de sua transferência para o prédio atual, na charmosa Avenida Doutor Vieira de Carvalho, em 1960, incluiu sugestões como filé Café de Paris (filé-mignon flambado no conhaque). Sob a direção de Antonio Carlos Marino desde 1979, o cardápio tem passado por constantes renovações. Uma delas é a deliciosa lula recheada com frutos do mar e risoto parmigiano. A outra é o torteline com cogumelos secos e cenouras. Por trás dessas criações, encontram-se o próprio Marino, que está em contato permanente com a culinária de Lucca, na Toscana, e seu chef José Francisco Santana, há mais de 20 anos na casa. Se não bastasse, o serviço é correto e os preços são razoáveis.