Xadrez na favela: projeto resgata autoestima e leva crianças a competições
Algumas já demonstram talento e tem até mãe em pódio de Copa Online do esporte
Com a finalidade de estimular o aprendizado e dar uma opção de lazer aos moradores da comunidade Jardim Recanto Suave, de Cotia, na região metropolitana de São Paulo, uma ONG decidiu dar aulas de xadrez para os moradores do local, em sua maioria, crianças e adolescentes.
Além de perceber uma evolução na autoestima dos participantes, o projeto já levou alguns deles para competições em cidades do estado. Muitos já trouxeram medalhas e troféus e tiveram a oportunidade de conhecer a praia pela primeira vez na vida.
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É o caso do estudante José Gabriel Rodrigues de Morais, de 14 anos, terceiro colocado no 4º Open Vicentino de Xadrez, realizado em São Vicente, no litoral paulista, em agosto último. Após a vitória, a equipe, composta por José Gabriel e outras três crianças da comunidade, foram conhece o mar. “No xadrez precisa fazer muitos cálculos e acho que isso influencia muito na matemática”, afirma o adolescente.
Ele aprendeu a jogar há apenas dois anos e hoje já ganha dinheiro para ensinar os novatos. “Tento passar o máximo de conhecimento que recebi, e consigo ajudar dentro de casa”, diz. Além de receber para ensinar, ele ganha uma bolsa composta por um pequeno valor e uma farta cesta básica que faz a alegria da sua mãe, a dona de casa Rosilene Maria da Silva.
Rosilene cursou até a quarta série do ensino fundamental e também aprendeu as regras do jogo do tabuleiro. Ela faturou o 2º lugar na categoria feminino da Copa Online de Damas e Xadrez, em agosto passado. Além dela e de João Gabriel, outros dois filhos, Rafael, de 12 anos, e José Roberto, de 18, também jogam.
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“Pra mim foi ótimo. Os meninos também adoram e até melhoraram na escola, inclusive o José Roberto, que é especial e se adaptou muito bem, está bem melhor agora”, afirma
O projeto Xadrez 360º, que será rebatizado de Casa Xadrez em breve, nasceu numa conversa entre a psicóloga Luciana Damasio e Rosilene, em 2019. “Um dia ela [Luciana] apareceu na nossa comunidade e fizemos amizade. Ela e o Fábio [marido de Luciana] falaram sobre o projeto na pequena área aqui do meu barraco. E assim teve início o projeto”, afirmou Rosilene.
Luciana começou a visitar a comunidade no ano de 2017. Dois anos antes, em 2015, ela havia fundado a Associação Casa Bodisatva, uma ONG baseada nos preceitos do budismo. A associação visa auxiliar as pessoas em situação de vulnerabilidade e hoje ocupa um barraco montado numa palafita sob um córrego que corta parte da comunidade Jardim Recanto Suave.
“Eu moro em Cotia, perto dali, e inicialmente a gente estava fazendo uma coisa bem informal, apenas visitando as famílias, ajudando as crianças nas tarefas, e a ler e a escrever. O xadrez veio porque o meu marido adora jogar xadrez, e percebemos que isso poderia ser uma ferramenta para ajudar as crianças a se divertirem e também aprenderem algo”, afirma a psicóloga.
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O marido dela, Fábio, aprendeu a jogar xadrez aos sete anos com o avô, no início dos anos 1970, quando o russo Anatoly Evienvich Karpov já era uma lenda no esporte. “O que motivou a ideia de montar o projeto dentro da comunidade é que o xadrez tem vários ganhos secundários que a pessoa vai adquirindo e são importantes para a vida”, diz.
Apesar de já saber que algumas das crianças já demonstram talento, ele afirmou que o objetivo não é o de formar nenhum campeão. “Nosso objetivo é o de ensinar disciplina, paciência, persistência, respeito e alegria”, diz.
Início e repercussão
Na comunidade do Jardim Recanto Suave moram perto de 300 famílias. São ao menos 200 crianças. Desse total, ao menos 50 frequentavam as aulas antes da pandemia.
O início foi difícil, com os alunos usando tabuleiros de papelão e tendo que sentar no chão da quadra descoberta para ter as aulas. “Com o tempo ganhamos a doação de uma lona e conseguimos cobrir o chão”, afirmou.
O projeto foi ganhando adeptos e apoiadores. Entre eles está o grande mestre de xadrez Krikor Sevag Mekhitarian, atleta bicampeão brasileiro da modalidade e contratado pela equipe Fúria. Krikor fez a doação de materiais para que os jovens pudessem jogar.
Outra estrela do esporte que ajuda os garotos do xadrez de Cotia é o mestre internacional Renato Quintiliano, jogador que é um dos maiores exemplos para a garotada, já que morou perto da comunidade e hoje viaja o mundo para disputar campeonatos.
Com as doações as crianças ganharam tabuleiros, cadeiras e até uma sede.
Durante a pandemia, as atividades foram feita de forma remota. Muitos tiveram de desistir por não possuir celular ou acesso à internet. Com a ajuda de apoiadores, que doaram celulares, cerca de 30 voltaram. Agora, segundo Fábio, a ideia é que com a retomada das atividades, mais alunos possam aprender os movimentos do xadrez.