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O rosto das estatísticas: as vítimas da epidemia

As histórias de três famílias que perderam a luta para a Covid-19 dão um sentido concreto — e dramático — aos números anunciados pelas autoridades de saúde

Por Pedro Carvalho
Atualizado em 27 Maio 2024, 18h27 - Publicado em 10 abr 2020, 06h00
Estatísticas: conheça as histórias das famílias que perderam entes queridos para o coronavírus (Arquivo pessoal/Reprodução)
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Até a última terça-feira (7), as estatísticas oficiais mostravam que 667 brasileiros tinham morrido de Covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus. Desses, 296 moravam na capital. No estado, o mais atingido do país, eram 371 óbitos até o início da semana — 211 homens e 160 mulheres. As mortes continuam afetando principalmente pessoas com 60 anos ou mais (313 vítimas). Os números reais são ainda maiores, já que o próprio Ministério da Saúde admite subnotificação. Somente no Instituto Adolfo Lutz, onde são feitos os exames da rede pública paulistana, exis- te uma fila de cerca de 14 000 testes em atraso.

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Nos cemitérios públicos da cidade, a imensa maioria dos corpos enterrados com suspeita da síndrome ainda não teve os exames finalizados. No Vila Formosa, o maior da capital paulista, a média de 35 sepultamentos diários passou para sessenta — e “os chefes têm dito que vai chegar a 100”, afirma um responsável pela equipe de sepultadores (isso apenas no Vila Formosa 1, uma vez que o local é dividido em “1” e “2”). São números alarmantes. Mas, ao mesmo tempo, não são números. São irmãs, pais, avós. São as histórias a seguir.

UMA FAMÍLIA DIZIMADA

Maria de Salete Osera, 60, Paulo Roberto Vieira, 61, e Clóvis Luiz Vieira, 62

Os irmãos Maria, Paulo e Clóvis começaram a trabalhar cedo, por volta dos 14 anos. Maria foi caixa de supermercado em Itapecerica da Serra, onde a família sempre viveu, depois supervisora de planos de saúde. Paulo virou chefe do almoxarifado da prefeitura. Clóvis teve o ofício de mecânico de caminhões. Agora, sexagenários, procuravam terreno em São Bento do Sapucaí, na Serra da Mantiqueira, onde eles — que têm outros quatro irmãos — pretendiam morar. “A gente sem- pre viajava para lá, é uma região com muito verde, por isso gostávamos tanto”, explica Rafaela Osera, 33, filha de Maria.

vítimas coronavírus
Da esq. para a dir., Maria, Paulo (de vermelho) e Clóvis (de azul) (Arquivo pessoal/Reprodução)
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A suspeita é que tenham se contagiado em uma festa de aniversário na casa de Paulo, em 10 de março. Dos 28 convidados, catorze apresentariam sintomas de Covid-19. Maria deu entrada em um hospital de Taboão da Serra no dia 25. Estava com oxigenação baixa (80, em comparação à taxa normal de 95) e havia perdido paladar e olfato. “Os exames, que só ficariam prontos na última quarta-feira (8), confirmariam o caso de novo coronavírus. Em um hospital público de Itapecerica, Paulo e Clóvis tinham quadro parecido. Receberam ventilação mecânica e foram internados em UTIs. Não resistiram. Maria morreu no dia 1o. Clóvis, no dia 2. Paulo, que gostava de andar de bicicleta, no dia 3. “Nosso sentimento é quase de revolta. Como é possível morrerem três na mesma família?”, diz Rafaela. “Nos últimos tempos, minha mãe andava apaixonada pelo Lucas, o sobrinho de 8 anos. Levava para o cinema, dava pipoca… O menino está arrasadíssimo.”

DOS TEMPOS DA MESBLA

Marcos José dos Santos, 60 anos

Qualquer paulistano que tenha comprado móveis na antiga Mesbla pode ter se encontra- do com Marcos José dos Santos. Era ele quem montava a mobília dos clientes, em diversos endereços da varejista. Quando a rede baixou de vez as portas, em 1999, o simpático e sorridente torcedor do Santos passou a trabalhar como segurança de prédios e empresas. Desde que nasceu, Marcos morou na mesma casa, um sobrado da Rua Pedro Voss, na Vila Carrão, que dividia com a irmã, Meire dos Santos, 62. Bem cedo, quase todos os dias, fazia caminhadas no Ceret, tradicional parque da região. Também atuava como diácono na Igreja Maravilhas de Cristo. Era sua principal atividade nos últimos três anos, depois de ficar desempregado.

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Marcos José dos Santos e a filha, Gabriele, que não pôde se despedir dele (Arquivo pessoal/Reprodução)

Na segunda semana de março, começou a ter uma tosse seca que não passava. No dia 27, deu entrada no Hospital Sancta Maggiore, unidade Dom Pedro, na Sé. Sentia um forte cansaço. Tomografia dos pulmões revelou a pneumonia viral típica de Covid-19, e os médicos o consideraram um caso da doença. Marcos recebeu oxigênio suplementar por diversas vezes e ficou na UTI, mas faleceu após parada cardíaca, no dia 31. Só seria enterrado dois dias depois, em caixão lacrado e sem a possibilidade de velório, no Cemitério da Vila Formosa — a família tentou o Vila Alpina, mas lá a fila seria de três dias. Ele deixa a filha Gabriele, 20, que está grávida e, por isso, não pôde ir ao cemitério para se despedir do pai.

DE FUSCA ATÉ O ALASCA

Rafael Sawaya, 74

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Rafael Sawaya e Ivan Charoux, 77, eram “carne e unha” desde a infância. Cresceram juntos nas ruas arborizadas da antiga City Lapa. Depois, viraram sócios em uma loja de carros. E, lado a lado, viveram uma aventura inesquecível, em 1970. Em um Fusca 62, foram de São Paulo ao México para assistir à seleção jogar a Copa. Além de servir de transporte, o carro foi hotel e restaurante pelos 25 dias de viagem. A cada 500 quilômetros, os dois se revezavam ao volante para que um deles dormisse. Chegaram a Guadalajara em 3 de junho, cansados e barbudos, mas a tempo de ver o Brasil bater a Checoslováquia por 4 a 1, na estreia da equipe canarinho. “Ficamos amigos de uns mexicanos muito ricos que nos deram morada, comida e ingressos. Só pediam que a gente jogasse bola e dançasse samba com eles”, diz Charoux.

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Rafael Sawaya e o Fusca 62 em que viajou até o Alasca (Arquivo pessoal/Veja SP)

Com a ajuda, o dinheiro reservado para a façanha acabou sobrando. A dupla decidiu estender a aventura, seguiu de Fusca na direção norte, chegando eventualmente a Anchorage, no Alasca. Ao todo, foram oito meses de estrada. “Quem sempre contava essa história era o ‘Fael’. Ele tinha uma memória impressionante e era um exemplar narrador de casos”, afirma Charoux. “Era, também, um excelente companheiro de viagem”. Rafael morreu no dia 1º de abril, vítima de Covid-19, em São Paulo. Além do amigo inseparável, deixa a mulher e dois filhos.

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Publicado em VEJA SÃO PAULO de 15 de abril de 2020, edição nº 2682.

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