Uma princesa duas vezes especial
Descendente da família real brasileira, Maria Cristina poderia ser considerada diferente. Mas, ao em vez disso, quebra barreiras para ser uma jovem comum
A realeza não aparece em forma de coroa no topo do cabelo liso de Maria Cristina, mas nos movimentos delicados. A jovem de 25 anos tem um nome que preenche duas linhas na carteira de identidade: Princesa Dona Maria de Orleans e Bragança. Uma princesa de carne e osso, ela ressalta. Não tem encantamento ou faz de conta. A realeza é simbólica, mas nem por isso deixa de existir. O sangue que corre nas veias dela é azul porque carrega o sobrenome da família real brasileira. Maria Cristina é filha de Dom João, que é bisneto da princesa Isabel e tataraneto de Dom Pedro II.
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O que a difere das 37 princesas que vivem no país é um cromossomo extra. Talvez Maria Cristina seja a única princesa do mundo inteiro a ter síndrome de down, o que a faz ser especial em dobro. A diferença, entretanto, é quebrada por ela a cada momento. Apesar do sangue azul e do cromossomo extra que tem no corpo, a princesinha tem a vida de uma jovem comum: trabalha, namora, sai com os amigos e viaja com a família. O que a diferencia é a profissão que escolheu seguir, a de escritora.
Sentada em frente a um divã rosa, em um quarto amplo e delicadamente decorado na zona oeste do Rio de Janeiro, Maria Cristina passa boa parte das tardes com diversas pilhas de papeis, um laptop, o celular, um tablet e a televisão ligada. Compenetrada, os olhos se dividem entre ver os personagens da novela e montar frases no documento do computador. Os enredos inspiram a novela que a jovem está escrevendo, e que constitui seu terceiro livro. A empolgação adentra o final de semana, mas é questionada pela mãe, a arquiteta Stella Lutterbach Leão, que a pede para descansar.
O sonho de alfabetização também era da mãe, que ouviu sete nãos de escolas regulares antes de poder matricular a filha. Paralelamente, aos oito anos, Maria Cristina começou a ter aulas particulares com Maria Francisca Mendes, a Francis. Em um ano ela quebrou a barreira que havia na época, de que pessoas com síndrome de down não poderiam aprender a ler e escrever. Além de se alfabetizar, escolheu ser escritora, deslumbrando Stella.
Na escrivaninha, Maria Cristina guarda “Carta de Amor”, seu primeiro livro publicado em 2006, e o último exemplar da segunda obra, lançada em 2013. “Siwa e meus companheiros” simboliza duas paixões: a escrita e os animais. Esta segunda paixão também se configura em outro trabalho. De segunda a sexta, ela veste um uniforme claro, com um lenço estampado, para atender clientes de uma pet shop. A princesa não encanta apenas os bichos, que chegam e vão imediatamente aos seus pés para receber carinho. Os funcionários da empresa a recebem com um sorriso de orelha e a orelha e ganham um beijo na bochecha, bem estalado, como retribuição.
O tempo dos finais de semana é dividido com o namorado Gustavo de Aratanha e o pai, o fotógrafo e empresário Príncipe Dom João Henrique de Orleans e Bragança, que mora em Paraty. Desde 2009, quando os pais se separaram, Maria Cristina ganhou mais pessoas na família e mais motivos para viajar. Hoje, diz orgulhosa que tem dois pais e duas mães. Além dos que a geraram, tem o padrasto José Portinari Leão e a madrasta Claudia Melli. A princesa parece ter um coração bem grande, do tamanho do coração de… uma princesa. Nele, todos acabam entrando, mesmo quem ela vê por apenas dois minutos. A afeição é imediata. A memória, tão grande quanto o coração.
A vida nunca foi “especial” para a princesinha
Hoje, Maria Cristina tem uma vida comum. Independente, organiza seus compromissos diários e planeja os passeios com as amigas e com o namorado. A mãe diz que ela é pioneira: está sempre à frente, quebrando barreiras. Mas, em relação à inclusão, a realidade atual é completamente diferente daquela de 25 anos atrás, quando nasceu. Não haviam muitas discussões porque as informações sobre síndrome de down eram quase nulas no Brasil. Stella foi uma das primeiras a fazer a frente de um movimento que surgiu no Rio de Janeiro e que ganhou o nome de Sim Down, uma associação dos pais de crianças com um cromossomo extra no par 21. O fato de ela ser descendente da realeza ajudou na divulgação do assunto.
“A nossa sociedade sonha com a perfeição e não existe perfeição. Nós aprendemos com ela que a diversidade é uma parte importantíssima na vida do ser humano” afirma o pai Dom João. A mãe conta que o nascimento de Maria Cristina não alterou a rotina da família. “A gente não viveu em função dela. Eu acho que não era uma coisa que deveria ter um peso de mudar a vida dos outros. A gente fez a vida normal”, explica Stella.
Nos primeiros anos da vida da filha, ela também assumiu a direção de relações públicas da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, com sede em Brasília e reconhecida pelo Ministério da Educação. A mãe também fez viagens aos Estados Unidos para obter mais informações e repassar aos brasileiros.
Uma das principais dificuldades foram os erros médicos. Apesar de levar a filha a cada seis meses no oftamologista, o médico não diagnosticava a miopia, três graus em um olho e quatro em outro. Stella estranhava a falta de interesse de Maria Cristina em atividades lúdicas. Somente aos 7 anos, com óculos, a princesinha entrou no universo da escrita e dos símbolos. As letras estão em todas as partes do quarto amplo da jovem. Na primeira gaveta da mesa de cabeceira, ela guarda um diário. Na segunda gaveta, livros e revistas.
O mundo parece pequeno para todas as vontades de Maria Cristina. Ela mal começou a escrever o terceiro livro, mas as inúmeras vontades não param de saltitar em sua mente. A princesa sonha em ser diretora: quer tirar o enredo do papel e levar para a televisão. A história de Maria Cristina, tal como a de uma princesa, está longe do fim, mas, se o presente já é feliz, o futuro tende a ser mais ainda.
*Essa reportagem foi realizada para o Curso Abril de Jornalismo 2015, num projeto dos alunos chamado Elástica