Uma noite no albergue
No último sábado (9), vagas do novo abrigo da prefeitura, em sua maioria, estavam vazias. Muitos moradores de rua ainda preferem dormir ao relento
A temperatura não passava de 15 graus na Praça Júlio Prestes, no centro, às 23 horas do último sábado (9). Em frente à Sala São Paulo, um grupo entusiasmado de sete moradores de rua celebrava um aniversário brindando com cachaça barata. O cheiro da bebida, que se misturava a outros odores desagradáveis da sujeira acumulada na calçada, não lhes causava nenhum incômodo.
A única mulher presente, Andreia Vanessa da Cruz, dividia um cobertor com um dos colegas e parecia feliz com a homenagem. Ela completava 39 anos, apesar de aparentar pelo menos dez a mais. Diz ser portadora do vírus HIV e viciada em álcool. “Não posso ficar longe da garrafa”, afirmava. A conversa foi interrompida com a chegada de uma Kombi da Central de Atendimento Permanente e de Emergência (Cape), serviço da prefeitura que recolhe pessoas das praças e calçadas para encaminhá-las a um abrigo. Andreia abandonou sua garrafa plástica de 600 mililitros com pouco menos da metade de aguardente e embarcou no veículo, ao lado de outros três companheiros. Os demais preferiram passar o restante da noite ao relento.
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Depois de um percurso de dez minutos, a Kombi estacionou na porta de um prédio de dois andares, com fachada azul, no Brás, na Zona Leste. Trata-se do Centro de Acolhimento Emergencial Alcântara Machado, o mais recente endereço da rede de 55 abrigos mantidos pela administração municipal. Inaugurado há dois meses, distingue-se dos outros por ser o único a receber gente em qualquer momento da noite — os demais exigem cadastro, têm restrição de horário e a estada não pode ultrapassar seis meses. “Ele é destinado a pessoas que precisam de um pronto atendimento”, afirma a vice-prefeita, Alda Marco Antonio, responsável pela Secretaria de Assistência Social. O novo albergue dispõe de oitenta vagas. No térreo ficam a cozinha e o vestiário, com quatro chuveiros de água quente e um vaso sanitário. No piso superior há três dormitórios, um feminino e dois masculinos.
Quando chegaram, a aniversariante Andreia e seus três acompanhantes preencheram um questionário com os dados básicos e, por volta da 1 da manhã, encaminharam-se ao refeitório. No cardápio, feijão, arroz, farofa e picadinho de carne, servidos em um marmitex de isopor.
Pouco antes, haviam comido por ali os haitianos Remy Baptiste, de 40 anos, e Epiphane Aristhene, 32, que estão morando em São Paulo há cerca de um mês. Depois do terremoto que devastou parte do Haiti em 2010, eles saíram em busca de melhores condições de sobrevivência. “Viemos aqui para vencer na vida”, dizia Baptiste.
Outro ocupante do refeitório era Donizete Aparecido de Jesus, de 54 anos, que se locomovia com o auxílio de um andador por causa de uma cirurgia recente no fêmur. Sentado ao lado da porta dos fundos, fumava cigarros Shelton, um atrás do outro. “Ganho algum na Rua São Jorge, ali perto do Corinthians”, contou. “Os fregueses me olham nessa situação e descolam um dinheirinho.”
No início da madrugada, quando os hóspedes foram se recolher, apenas nove vagas dos dormitórios estavam ocupadas. Sobravam portanto 71. Essa disponibilidade de leitos contrasta com a estimativa de que existem atualmente 13.000 moradores de rua na cidade. A prefeitura vem aumentando seus investimentos para atender essas pessoas. Neste ano, o orçamento para cuidar das pessoas desabrigadas é de 102 milhões de reais, ou 20% a mais do que o do ano anterior. Há previsão de inauguração de mais três abrigos na capital até o fim deste mês. A rede tem capacidade para acolher 10.000 pessoas por noite.
Em tese, a maior parte dos sem-teto não precisaria passar a madrugada ao relento. Mas o problema é complexo. Existe muita resistência a sair das ruas, principalmente porque boa parte dessa população é viciada em drogas ou tem algum comprometimento de saúde mental. Com isso, grande parte prefere viver na via pública para não seguir nenhum tipo de regra.
É o caso de Ricardo Evangelista Moreira, de 47 anos, um dos que se recusaram na Praça Júlio Prestes a embarcar na Kombi que levou os colegas à Zona Leste. “Cê tá louco? Eu não vou, porque eles vão me acordar às 5 da manhã”, justificou. Os funcionários da Cape comemoram quando conseguem mudar um pouco essa realidade, já que, de cada dez pessoas abordadas, apenas metade costuma concordar em dormir de maneira mais decente. Apesar do frio implacável.
Rede de emergência
A estrutura disponível para socorrer os 13.000 sem-teto que vivem na capital
55
é o número de albergues
10.000
vagas existem nesses locais
102 milhões de reais
é o gasto anual da prefeitura com o serviço