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Jornalista virou Uber por um mês e lucrou só 30 reais por dia

Repórter descobriu os percalços da profissão e as trapaças dos motoristas do aplicativo para aumentar o rendimento

Por Carlos Messias
Atualizado em 4 abr 2017, 19h23 - Publicado em 24 mar 2017, 19h38
O repórter-chofer: dores nos tornozelos no primeiro dia da jornada (Reinaldo Canato/Veja SP)
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Ao abrir o celular para chamar um carro, aparece a mensagem: “Ganhe dinheiro com o Uber”. Em uma crise que deixou 12 milhões de desempregados, parece atraente a ideia de reforçar a renda com algumas horas de trabalho diárias, em regime flexível. Quem decide se colocar atrás do volante, no entanto, encara outra realidade.

A imagem do motorista competente e prestativo, que oferece água e bala de hortelã, está ficando para trás. Foi substituída por pessoas que, para não ficarem no prejuízo, dirigem à exaustão, fazem plantão de doze horas, abordam clientes nas calçadas e chegam a organizar cartéis.

Essas e outras questões fizeram parte do meu dia a dia ao longo do último mês. A convite de VEJA SÃO PAULO, sem me identificar como repórter, trabalhei como motorista do aplicativo. Aluguei um Renault Sandero e atuei na praça entre 20 de fevereiro e 19 de março.

uber fila aeroporto de guarulhos
Tendas no Aeroporto de Guarulhos: fila de espera de até doze horas (Reinaldo Canato/Veja SP)

O cadastro no serviço é bem simples, o que surpreendeu até o secretário municipal de Transportes, Sérgio Avelleda, em reunião com vereadores há duas semanas. “Descobri que os candidatos são aprovados apenas enviando a documentação pelo correio.” A verdade é que nem isso é necessário: fotos do registro do carro e da carteira de motorista podem ser despachadas pelo celular. Quem nunca trabalhou na direção deve incluir a observação “exerce atividade remunerada” na habilitação.

Isso significa realizar um exame psicotécnico e desembolsar 140 reais em uma unidade do Poupatempo. Na prática, é possível tornar-se uberista em quatro horas. Nem é preciso ter veículo próprio. Recentemente, locadoras despertaram para esse filão e passaram a alugar modelos básicos, com motor 1.0, ar-condicionado e quatro portas (perfil para se enquadrar na categoria UberX, a mais simples), por 1 700 reais, em média, a cada trinta dias. A facilidade acaba aí.

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No primeiro dia, percebi que não ia ser moleza. Durante cinco horas, realizei catorze viagens em um percurso total de 112 quilômetros, o suficiente para provocar dores nos tornozelos, pela constante troca de marchas, e cansaço mental, culpa do trânsito caótico da metrópole.

O faturamento de 147 reais na jornada de estreia também causou desapontamento. Descontados a taxa de 25% do Uber mais a gasolina e o celular, lucrei 60 reais. Isso sem incluir gastos indiretos, como eventuais multas, manutenção, IPVA e depreciação do automóvel (se for próprio) ou aluguel (caso não seja). “O prestador do serviço é explorado não só na mão de obra, com o desgaste físico, mas também no seu capital”, afirma o economista Paulo Acras, presidente da Associação dos Motoristas Autônomos por Aplicativos.

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Uma das telas do aplicativo: lista de viagens concluídas (Reprodução/Veja SP)

Recentemente, a entidade realizou um estudo para avaliar os rendimentos de 280 motoristas do Uber e concluiu que boa parte deles trabalha dezesseis horas por dia. A empresa contesta essa conta. De acordo com a contabilidade da companhia, metade dos parceiros atua menos de dez horas por semana.

Em outro resultado da pesquisa, a associação calculou que praticamente todos os consultados terminaram o mês no prejuízo, quando incluídos os gastos indiretos na conta. “Se não ficar pelo menos oito horas na rua, não dá para pagar nem um prato de comida”, diz Acras, que no ano passado apresentou ao Ministério Público do Trabalho uma denúncia de trabalho análogo à escravidão.

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Há um exagero evidente na crítica. O faturamento diário pode chegar a 200 reais, por uma jornada de dez horas. Nesse esquema puxadíssimo, sem folgas no mês, os vencimentos chegariam perto de 6 000 reais, com um lucro de 2 000 reais. “Concentro meu turno nas horas do rush, quando a tarifa é mais cara”, explica Richard, uberista desde o ano passado, que pediu para não ser identificado e diz faturar 4 000 reais nos meses mais rentáveis.

Mas a maioria continua no negócio apenas por falta de opção. E, com a dificuldade para conseguir fechar o mês no azul, muitos estão apelando para uma série de artimanhas, dignas dos taxistas mais velhacos. Uma das mutretas mais prosaicas é aceitar uma viagem, mas estacionar a alguns quarteirões de distância do endereço de partida.

Impaciente, o cliente desiste da corrida, e o motorista fatura a taxa de cancelamento, de 7 reais (o usuário pode solicitar o reembolso pelo app). Essa dica me foi dada por colegas logo nos primeiros dias de trabalho. “É uma maneira fácil de ganhar dinheiro sem gastar gasolina”, diz Edson, uberista desde 2015.

A companhia afirma que monitora o movimento e desclassifica motoristas com vários cancelamentos seguidos de corridas, mas não informa quantos foram penalizados por essa prática. Há locais com esquemas bem mais elaborados, e, nesse aspecto, o Aeroporto de Guarulhos é imbatível.

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Uma das telas do aplicativo: ganhos diários (Reprodução/Veja SP)
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Trata-se de um ponto onde o Uber funciona de modo diferente. Ao se aproximarem de Cumbica, os motoristas entram em uma fila no aplicativo para pegar passageiros. Atraídos pela esperança de descolar uma corrida premiada à capital (cerca de 40 reais) ou mesmo ao interior, essa lista não começa com menos de 200 carros, e a espera pode chegar a doze horas.

Os veículos ficam estacionados em três bolsões por um período tão longo que se estabeleceu até uma base de apoio, com barracas de lanches e entregadores de marmitas. A tenda da Tia Rose, por exemplo, serve almoço por 12 reais e oferece carregadores de celular.

Ali, enquanto aguardam, os motoristas comem, batem papo, jogam cartas e alguns até bebem uma cervejinha antes de reassumir o volante. Esse tempo perdido só é compensado se vier um trajeto realmente suculento. Alguns agem de forma a ter certeza de que não vão sair no prejuízo.

Ao chegar a sua vez, o profissional liga para o passageiro a pretexto de combinar um ponto de encontro e tentar descobrir o destino. Se for uma corrida muito curta, o sujeito diz que está a caminho, mas volta ao baralho assim que desliga o aparelho. Cansado de esperar, o cliente cancela o pedido.

Nessa situação, o motorista não perde o lugar na fila e se mantém na luta por uma saída mais lucrativa. Há quem aproveite o tempo livre para realizar corridas paralelas, usando celulares extras. O macete é desativar o sistema de localização do smartphone com o qual se entrou na fila.

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UBER cliente
Dener Marcelo de Oliveira, 36: usuário do sistema (Reinaldo Canato/Veja SP)

Assim, pode-se deixar o local à vontade e voltar ao aeroporto sem perder a vez. “Basta fazer outros cadastros em nome de parentes”, explica o uberista Alexandre, que bate ponto ali. Com o objetivo de dificultar a vida dos espertalhões, em fevereiro o Uber diminuiu o perímetro da fila virtual e passou a priorizar quem leva passageiros a Guarulhos — eles ganham a preferência para trazer outro à capital. Com essas medidas, diz ter reduzido a espera em 60%.

Outra prática pouco ortodoxa em Cumbica é pescar clientes no desembarque dos terminais. Estacionados em local proibido, os profissionais abordam pessoas e negociam diretamente os valores. Uma corrida para a Vila Maria, na Zona Norte, era oferecida por 30 reais no dia 14. Pouco menos que o normal, mas, sem a taxa do aplicativo, vale a pena. Não é o único lugar onde viagens acertadas por fora se tornaram comuns.

Na saída da casa noturna Estância Alto da Serra, em São Bernardo do Campo, vale a máxima “Se organizar direito, todo mundo ganha”. Por ali, é praxe desligar o aplicativo e definir um preço prévio com o usuário. Assim, os uberistas passam a trabalhar como taxistas clandestinos. Ninguém pode furar o esquema.

Na madrugada de 11 de março, um desavisado chegou a aceitar uma corrida pelo celular, mas foi persuadido pelos outros a desistir. Para obterem uma estimativa da quantia a cobrar, muitos motoristas simulam uma corrida pelo aplicativo. Mas, sem que o passageiro perceba, usam como referência a tarifa do UberBag, categoria que cobra mais caro que o UberX.

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Os pagamentos são em dinheiro e, caso a pessoa não carregue notas no bolso, passa-se em um posto de gasolina para aplicar o valor em combustível no tanque. Há até um encarregado de organizar a trapaça. O agenciador aborda frequentadores, negocia preços e distribui as viagens. Para realizar a tarefa, ele recebe comissão de 15% por corrida. Menos que os 25% do Uber, afinal.

Outra tática que ouvi sendo comentada pelos colegas é organizar uma espécie de cartel por meio de grupos do WhatsApp. Em locais de grande concentração de público, como na saída de shows, vários profissionais desligam o aplicativo e, simultaneamente, solicitam carros como se fossem passageiros.

Assim, tentam reduzir a oferta e aumentar a demanda de modo artificial, forçando a elevação da tarifa graças a uma das leis básicas do capitalismo (e prevista nas regras do serviço). Na sequência, pegam as corridas a um valor mais alto. A prática nunca foi comprovada, e o Uber alega ser impossível concretizar essa interferência, pois os preços voltariam imediatamente ao normal assim que os aplicativos fossem religados.

A empresa também informa que tentativas de fraude contra o sistema levam ao desligamento do parceiro. A situação de penúria enfrentada por muitos uberistas é reflexo de vários fatores. Os principais estão relacionados a dois movimentos adotados pela multinacional americana em 2015.

São Paulo, SP 17/03/2017 UBER POR UM MÊS – Foto: Leo Martins
Lívia, que era passageira: percalços e desistência (Leo Martins/Veja SP)

Em junho daquele ano, foi lançada a categoria econômica UberX, que instituiu a tal taxa de 25% a ser paga pelo motorista a cada corrida. Até então, havia apenas a luxuosa Uber Black, que morde 20%. E, em novembro, a companhia baixou o valor da viagem em 15%.

Ou seja, em um intervalo de cinco meses, os prestadores do serviço começaram a ganhar menos e a pagar mais. E, ainda que a demanda continue alta, a concorrência nas ruas ficou mais acirrada. Em 2014, quando chegou ao país, o Uber tinha 1 000 veículos na capital. Naquela época, os pioneiros da área vangloriavam- se de embolsar até 8 000 reais por mês.

Hoje há 30 000 automóveis cadastrados na praça, e o faturamento dos uberistas caiu à metade. Isso sem falar nos avanços de outras empresas. Em setembro último, a 99 passou a oferecer a versão Pop, cobrando 17% de taxa do motorista com carro particular. “Crescemos 600% desde o início do ano”, afirma o gerente de política e comunicação, Matheus Moraes.

Além de enfrentarem dificuldades financeiras, os profissionais do ramo sofrem com casos de violência, que aumentaram após a adoção do pagamento das corridas em dinheiro, em 2016.

A insatisfação dos prestadores do serviço tem sido canalizada na forma de protestos. Pelo menos dois ocorreram na frente do Estádio do Pacaembu. Todo esse quadro levou a categoria a ser motivo de pena até entre seus maiores rivais. Há dois anos, donos de táxis saíam pelas ruas à caça de uberistas, e os casos de agressão se multiplicavam.

Hoje, a guerra praticamente acabou. Em fevereiro, um boato espalhado em grupos de WhatsApp alertava sobre um protesto que ocorreria em Congonhas. Segundo o relato, vários taxistas pediriam carros do Uber em direção ao aeroporto e roubariam a chave dos veículos, reunindo todas em um ato na área de embarque.

No dia marcado, nada disso aconteceu. “Percebemos que não adianta brigar com o pessoal do Uber, eles são uns coitados”, afirma Natalício Bezerra Silva, líder do principal sindicato dos taxistas, que em 2014 ameaçou incendiar os veículos dos concorrentes. Nesse cenário, vem crescendo a insatisfação dos passageiros com a precariedade do serviço.

torcedores UBER
Corrida após jogo do Palmeiras, no Allianz Parque: relatos de cartel em eventos (Reinaldo Canato)

Entre as principais queixas está a falta de senso de navegação dos motoristas. “O que mais ocorre é acompanhar, pelo aplicativo, o carro desnorteado nas imediações”, diz o engenheiro mecânico Dener Marcelo de Oliveira, que pegava um Uber do seu escritório, no Morumbi, até um bolsão na Marginal Pinheiros, onde embarca em um ônibus para casa, em São José dos Campos.

Depois de ter perdido a condução várias vezes por causa desses percalços, ele desistiu do app e agora faz o trajeto de táxi. Outras situações envolvem motoristas que dividem o mesmo cadastro, o que é irregular. “Várias vezes, eu estava esperando uma mulher e, ao entrar no carro, deparei com um homem”, diz a administradora Lívia Marraccini.

“Aí ele explica que está se revezando com ela, pois precisa pagar as contas.” Para evitar esse tipo de fraude, o Uber instituiu, há duas semanas, um teste de “verificação de identidade em tempo real”, em que o profissional é solicitado a tirar selfies periódicas.

A imagem é comparada à do banco de dados e, se houver inconsistência, a conta é bloqueada. Com 90% do mercado de transporte em carro privado via aplicativo, o Uber fez outros movimentos para contra-atacar as críticas. Em janeiro, anunciou a criação de um centro de atendimento, no Morumbi, com 7 000 funcionários, um investimento de 200 milhões de reais, com o objetivo de ampliar a capacidade de resolução de problemas.

E, neste mês, lançou o Select, categoria com preço 20% mais alto e carros mais novos, no mínimo de 2012 (na versão X, a exigência é 2008). Com isso, espera oferecer mais conforto aos usuários e estancar a fúria de motoristas. “Quando começou era uma maravilha, eu tirava 8 000 reais por mês”, afirma o uberista José, que ingressou no UberBlack com um Ford Fusion em 2015.

Em agosto passado, viu-se obrigado a trocá- lo por um Peugeot 2016 e migrar para o UberX. “Hoje, trabalho dez horas por dia, seis dias por semana, e faço 4 000 reais. Se continuar desse jeito, vou vender meu carro e desistir.” Minha impressão final não foi muito diferente.

Durante um mês, rodei 1 583 quilômetros em 131 viagens, passando por diferentes bairros como o Brooklin, na Zona Sul, e a Brasilândia, na Zona Norte, em um esquema de cinco horas por dia, cinco dias na semana.

uber capa
(Reprodução/Veja SP)

Nesse período, perdi tempo precioso com voltas desnecessárias pela capital ao seguir o navegador do aplicativo, que avisava conversões em cima da hora, indicava percurso na contramão e ficava sem sinal. Também enfrentei situações que claramente não valiam o esforço, como transportar passageiros bêbados no Carnaval da Vila Madalena e atravessar enchentes na Marginal Pinheiros por 10 reais.

No fim, havia embolsado 1 188 reais. Ao tirar os gastos, o lucro não passou de 500.


CONTA DIFÍCIL DE FECHAR
Os rendimentos e custos diários de um motorista do Uber (em reais)
FATURAMENTO* – 200
GASTOS – 129
Combustível: 84
Desvalorização do carro: 15
IPVA e seguro**: 7
Óleo e filtro: 7
Revisão e peças: 7
Lavagem semanal: 4
Plano de telefonia***: 4
Smartphone****: 1
LUCRO – 71

*Para dez horas, descontada taxa de 25% do Uber | **Para um Renault Sandero Authentique 1.0 2016 | ***Plano Porto Conecta, da TIM, com 5GB de internet 4G | ****Smartphone Asus Zenfone 3

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