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Carros possantes se transformam em armas fatais nas ruas da cidade

Tragédia com o Porsche que matou a advogada Carolina Menezes Cintra Santos mostra como veículos de luxo podem ser perigosos nas mãos de motoristas imprudentes

Por Giovana Romani e Manuela Nogueira (colaborou Fabiano Pereira)
Atualizado em 14 Maio 2024, 12h16 - Publicado em 16 jul 2011, 00h50
Capa Porsche 2226 - Audi
Capa Porsche 2226 - Audi (Luiz Guarnieri/)
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A advogada baiana Carolina Menezes Cintra Santos, de 28 anos, andava especialmente feliz nos últimos tempos. Havia seis meses, deixara a casa dos pais, no bairro de Itapuã, em Salvador, e se mudara para a capital paulista. Tinha conseguido uma colocação em sua área profissional num grande escritório da cidade e passara a morar em um apartamento na Rua Pedroso Alvarenga, no Itaim Bibi, em um prédio quase vizinho ao de sua irmã mais nova.

Linda e rica (era filha de um empresário da área petrolífera), na Bahia circulava na alta-roda. Fazia planos de se casar com o também advogado Bernardo Dantas Rodenburg, seu namorado havia dois anos. Ele mora no Rio de Janeiro e veio visitá-la na quinta-feira (7). Carolina encheu a casa de flores e preparou um jantar especial para dois. Na noite seguinte, foi sozinha ao aniversário de uma amiga de infância, nas redondezas de sua residência. “Mudar para São Paulo era o projeto da vida dela”, conta o pai, Eduardo Cintra Santos.

Aos 36 anos, o empresário paulistano Marcelo Malvio Alves de Lima também tinha motivos para se alegrar. Cerca de um mês atrás, realizara um sonho de consumo: adquirira um Porsche 911 Turbo, com potência de 500 cavalos, ano 2009, modelo 2010, na cor preta, avaliado em cerca de 500.000 reais. Uma das máquinas de rua mais possantes já criadas por uma montadora, o carrão alemão pode superar a marca de 300 quilômetros por hora de velocidade.

De família de classe média alta, Lima tem participação em dois empreendimentos, a administradora de carteiras de valores mobiliários ALP e a construtora Alves de Lima & Paryzer. Formou-se em engenharia há dois anos pela universidade AnhembiMorumbi. Mora com os pais e uma das duas irmãs em uma casa no Alto de Pinheiros. “Ele é um rapaz de bem, trabalhador e íntegro”, diz o advogado Daniel Bettamio Tesser, um de seus amigos. “Não é um moleque irresponsável.”

Na madrugada de sexta (8) para sábado (9), o destino da advogada se cruzou tragicamente com o do engenheiro. Por volta das 2h30, ele vinha em alta velocidade pela Rua Tabapuã, no Itaim Bibi, quando colidiu com o Hyundai Tucson prata de Carolina, que seguia pela Rua Bandeira Paulista.

Foi um choque extremamente violento. “A perícia constatou que o Porsche estava a cerca de 150 quilômetros por hora”, afirma Paul Henry Verduraz, delegado titular do 15º Distrito Policial, responsável pelo caso. Em depoimento, quatro testemunhas que estavam paradas atrás do Porsche momentos antes da batida, mais precisamente na esquina das ruas Tabapuã e João Cachoeira, contaram ter visto Marcelo largar bruscamente assim que o sinal abriu. “Elas ficaram impressionadas com a forte arrancada”, diz o delegado. Às autoridades, disseram ainda que o carro ganhou velocidade rapidamente — o modelo 911 Turbo vai de zero a 100 quilômetros por hora em pouco mais de três segundos — e, logo depois, ouviram um estrondo e viram apenas fumaça.

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Com o choque, o Tucson foi catapultado meio metro acima do solo e lançado a aproximadamente 25 metros de distância, até ser prensado contra um poste. O taxista Celso Bispo da Silva estava bem atrás do veículo de Carolina, na Bandeira Paulista. Segundo ele, a advogada atravessou o cruzamento enquanto o sinal ainda estava vermelho. “A moça deu uma paradinha e continuou devagar”, conta. “Qualquer um faria o mesmo naquele horário.” Ela morreu na hora. Errou ao atravessar o sinal fechado, mesmo em plena madrugada, mas o engenheiro errou muito mais ao dirigir de maneira temerária, a uma velocidade absurda, que transformou seu Porsche em um míssil.

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O engenheiro foi socorrido. Tinha um corte na nuca, a boca inchada, dor na bacia e dificuldade para respirar. Após receber a ajuda de um bombeiro para sair do Porsche, ele começou a procurar o celular. De posse do aparelho, ligou para Tesser, dizendo que havia sofrido um acidente. “O cara falava: ‘Acabaram com o meu carro’”, afirma o delegado Noel Rodrigues de Oliveira Júnior, do 15º DP, que estava de plantão na madrugada e chegou ao local, a 350 metros do distrito, alguns minutos após a colisão.

Enquanto Marcelo era levado para o hospital São Luiz, no Morumbi, já acompanhado por Tesser e um soldado da PM, outros três advogados se apresentavam no distrito policial, onde ele foi indiciado por homicídio doloso — por assumir o risco de matar, considerando a alta velocidade numa via cujo limite é de 60 quilômetros por hora. Sua pena pode variar de seis a vinte anos de prisão. Os advogados entraram com recurso para garantir a liberdade provisória de seu cliente e, no domingo (10), a juíza Ana Carolina Della Latta Camargo Belmudes concedeu o benefício. Impôs, no entanto, uma fiança de 300.000 reais.

Marcelo ficou internado durante cinco dias com suspeita de perfuração no pulmão. No fim da tarde de terça-feira (12), a fiança foi paga e, no dia seguinte, ele recebeu alta hospitalar.

Desde então, o advogado Celso Sanchez Vilardi passou a cuidar de sua defesa. Um dos mais conhecidos criminalistas de São Paulo, ele tem entre seus clientes o notório Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT e uma das figuras-chave no esquema do mensalão. Diz Vilardi: “Infelizmente, foi uma tragédia. Pode ter um componente relacionado a uma imprudência por causa da velocidade? Pode. Mas, se ficar comprovada, a imprudência veio das duas partes. Se você tem excesso de velocidade de um lado, do outro tem uma infração, que é passar o sinal vermelho”.

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Sua principal preocupação no processo é defender Marcelo da acusação de homicídio doloso. “A investigação deve ser de um crime culposo, em que não há intenção de matar. Marcelo estava parado no semáforo anterior, não vinha dirigindo de maneira tresloucada, furando todos os faróis. Independentemente da velocidade, não é possível prever que alguém vai cruzar o sinal vermelho.” Vilardi pretende ainda refutar os agravantes presentes no boletim de ocorrência. Nessa linha, promete apresentar provas inequívocas de que seu cliente não estava embriagado — entre elas, um laudo médico. A preocupação ocorre porque várias testemunhas relataram à polícia ter visto o motorista trôpego após o acidente.

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Um dos próximos passos do processo será o depoimento de Marcelo à polícia, marcado para a próxima sexta. Paralelamente, uma equipe de peritos do Instituto de Criminalística prepara o laudo sobre o acidente, confirmando a velocidade do Porsche e outros detalhes da batida.

Numa primeira avaliação, os especialistas acreditam ter fortes indícios de imprudência. Como não foram encontradas marcas no solo, estimam que o engenheiro não teve tempo de pisar no freio. “O número de 150 quilômetros por hora é coerente com o cenário da colisão”, diz o perito Osvaldo Negrini, ex-diretor técnico do Instituto de Criminalística de São Paulo e autor do livro Dinâmica dos Acidentes de Trânsito. O laudo definitivo da batida e outras peças importantes da investigação, como os exames que vão revelar se os dois motoristas envolvidos tinham consumido álcool ou outras drogas, devem ficar prontos dentro de um mês.

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Capa Porsche 2226 - Importadora Avenida Europa
Capa Porsche 2226 – Importadora Avenida Europa ()

A presença em nossas ruas de bólidos como o da tragédia do Itaim é cada vez maior. Os anos de crescimento econômico, combinados com a perda de valor do dólar diante do real, produziram um ambiente favorável à importação de veículos. Nunca se negociaram por aqui tantos automóveis vindos do exterior. O fenômeno produziu uma aceleração expressiva no comércio até na faixa de modelos mais caros e sofisticados, um olimpo automotivo habitado por grifes do porte de Ferrari e Jaguar, entre outras.

Considerando apenas o conjunto de marcas top, foram vendidas na capital no ano passado 6.330 unidades dessas joias mecânicas — ou mais que o dobro do volume registrado em 2003. Em algumas montadoras o crescimento foi ainda maior. É o caso da Porsche, com uma evolução de 750% no mesmo período.

Nos últimos três anos, chegaram ao país representações oficiais das italianas Lamborghini e Pagani, das inglesas Aston Martin e Bentley. Todas elas com um único ponto de venda no Brasil: São Paulo. O motivo é que a cidade concentra boa parte desse mercado de luxo. “Cerca de 70% das nossas vendas no país são para clientes paulistanos”, afirma Ivan Fonseca e Silva, presidente da Aston Martin Brasil.

Capa Porsche 2226 - Ferrari
Capa Porsche 2226 – Ferrari ()

Essa onda produziu alguns efeitos colaterais. O mais inofensivo deles está relacionado à multiplicação de exibicionistas que tiram seus carrões da garagem nos fins de semana para passear na Rua Oscar Freire ou em outros pontos badalados da capital, sempre rodando em velocidades baixas e desviando cirurgicamente de valetas e buracos.

A face mais perigosa é quando motoristas despreparados se sentem à vontade para cravar o pé no acelerador e testar, de forma irresponsável e quase suicida, os limites dessas máquinas dentro da cidade. Com isso, contribuem para transformar as já suficientemente caóticas ruas e avenidas da metrópole num verdadeiro Iraque. “Para algumas pessoas, os carros simbolizam um estilo de vida”, afirma Fábio de Cristo, psicólogo especializado em comportamento no trânsito. “Quem compra um Porsche, por exemplo, está atrás do status de velocidade e tende a expressar isso utilizando a potência do motor.”  

Tabela Capa Porsche 2226 - Infrações aceleradas
Tabela Capa Porsche 2226 – Infrações aceleradas ()

Em decorrência desse tipo de atitude, acidentes graves com modelos velozes deixaram de ser raridade. Nos últimos três anos, quase dobrou o total de multas aplicadas pela CET a condutores que trafegavam a velocidades 50% acima do limite permitido (veja o quadro na pág. 24). Além de abusarem da velocidade, muitos motoristas desconhecem o comportamento dos bólidos em situações mais críticas e que exigem reflexos rápidos.

“Esses veículos não são confortáveis nem fáceis de dominar”, explica Luciano Burti, piloto e comentarista de Fórmula 1 da Rede Globo. “Por isso, podem pôr em risco a segurança de quem não está acostumado a andar no limite.”

Outra agravante desse panorama é a sensação de impunidade. A nova Lei Seca, em vigor há três anos, ainda não pegou em São Paulo. Muitos motoristas não se sentem intimidados a assumir o volante depois de consumir bebida alcóolica. Na quinta passada, por exemplo, um Mercedes-Benz Kompressor chocou-se contra um poste na Avenida Sumaré. O veículo pegou fogo e os três ocupantes ficaram feridos, mas sem gravidade. Segundo policiais, o motorista aparentava estar alcoolizado e acabou sendo levado ao 23º Distrito, em Perdizes.

Capa Porsche 2226 - Mercedes
Capa Porsche 2226 – Mercedes ()

A sobrevivência do condutor e dos passageiros foi um milagre, pois esse tipo de acidente costuma terminar em tragédia, como a da colisão no Itaim. Durante a semana, jornalistas de diversas publicações fizeram plantão em frente à casa da família Alves de Lima, no Alto de Pinheiros. Cada vez que algum morador aparecia na porta, fotógrafos e cinegrafistas corriam para capturar a cena. Orlando, o pai do engenheiro, estava visivelmente abalado e passou dias ouvindo perguntas como: “O seu filho estava bêbado?”.

Na quarta-feira, o promotor de justiça Rogério Leão Zagallo pediu que o valor da fiança de Marcelo fosse reajustado para 600.000 reais. Em Salvador, o pai de Carolina, Eduardo Cintra Santos, diz que não pretende acionar nenhuma medida jurídica por enquanto. “Isso é um absurdo. A vida da minha filha não tem preço.”

A MULTIPLICAÇÃO DOS BÓLIDOS

Nos últimos anos, as vendas de carros de luxo importados mais que dobraram na cidade. Os modelos Porsche ficaram bem acima dessa média, com uma evolução de 750% no período

Capa Porsche 2226 - Gráfico Vendas Importados
Capa Porsche 2226 – Gráfico Vendas Importados ()

 

Capa Porsche 2226 - Gráfico Vendas Porsche
Capa Porsche 2226 – Gráfico Vendas Porsche ()
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