Surto de gripe H1N1 coloca a capital em alerta
Fila nos hospitais, corrida às clínicas de vacinação, sumiço de remédios das farmácias, escolas em estado de alerta e outros problemas gerados pelo surto do vírus H1N1
Humanos convivem com a gripe há séculos. Em 412 a.C., o grego Hipócrates, o pai da medicina, documentava um surto durante a Guerra do Peloponeso e descrevia os sintomas diagnosticados em atenienses e espartanos. Entre as dezenas de vírus causadores da doença, o H1N1 tem se mostrado especialmente desagradável ao longo dessa relação forçada e duradoura.
Ele é o culpado pela famigerada gripe espanhola, disseminada nas trincheiras da I Guerra Mundial e responsável por cerca de 50 milhões de mortes entre 1918 e 1919. Também estão em sua conta quase 20 000 vítimas da gripe suína de 2009. Em maior ou menor intensidade, seus ataques massivos ocorrem em diferentes regiões do planeta de tempos em tempos. Há, no entanto, uma característica em comum para essas invasões repentinas: a sazonalidade, associada à estação mais fria do ano. No caso do Brasil, por exemplo, o período crítico vai de maio a agosto.
Diante desse quadro, o atual surto que a comete São Paulo e outros estados é inédito. Não há registro anterior de um aumento tão significativo de casos entre fevereiro e março, ou seja, em pleno verão.
Na capital, o problema chegou com bastante força. Desde o início de janeiro até o último dia 22, a prefeitura contabilizou 66 pessoas com síndrome respiratória aguda grave provocada pelo H1N1, contra apenas um episódio do tipo no mesmo período do ano passado. Esse número é o que merece atenção especial das autoridades públicas de saúde, pois abrange o grupo de pacientes que correm risco mais sério.
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A doença provocou oito mortes só neste início de 2016 e nenhuma nos doze meses anteriores. Mais de 80% dessas vítimas apresentaram outra enfermidade associada. Em seis dos grandes hospitais privados daqui, o índice de infectados pelo H1N1, em geral, sem levar em conta a gravidade do quadro, superou a casa das 600 ocorrências no primeiro trimestre deste ano, sendo que a maioria dos casos aconteceu no mês passado.
Na hipótese mais aceita para justificar o surto, o microscópico organismo teria cruzado o Atlântico trazido por turistas que curtiram férias na Europa e na Ásia entre novembro e janeiro — essas regiões apresentaram elevado número de doentes no recente inverno do Hemisfério Norte. Outra suposição envolve uma alteração no código genético do vírus, o que explicaria sua capacidadede proliferar fora de época.
O cenário preocupante obrigou o governo do estado e a prefeitura a adotar medidas emergenciais. No momento, o foco está voltado para a antecipação da campanha de vacinação. Inicialmente prevista para o fim do mês, ela começará já nesta semana, dividida em três etapas. A primeira, a partir desta sexta (8), será dirigida a 532 400 profissionais de hospitais públicos e privados da Grande São Paulo. A partir do dia 11, o programa amplia sua abrangência a 982 800 crianças de 6 meses a 5 anos, 179 000 gestantes e 1,8 milhão de idosos da região metropolitana. As outras cidades do Estado e os demais grupos de risco, como doentes crônicos, indígenas e presidiários, entram no dia 30.
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Além de imunizarem contra o H1N1, as injeções protegem dos vírus H3N2 e Influenza B/Brisbane (por isso, são chamadas de vacinas trivalentes) e estão sendo produzidas em ritmo acelerado por 500 profissionais do Instituto Butantan. Nesta semana, o órgão entrega quase metade dos 54 milhões de ampolas que serão vendidas ao Ministério da Saúde a um custo unitário de 14,42 reais.
O pacote de ações públicas de emergência inclui a reorganização nos serviços de saúde. “O plano é criar alas especiais para o tratamento de casos respiratórios graves em alguns locais de referência, como as Unidades de Pronto Atendimento 24 horas, a partir de maio”, explica o secretário municipal de saúde, Alexandre Padilha. “Outro projeto em estudo é reforçar os principais centros com a contratação de pediatras.” Como a previsão é que o inverno seja mais rigoroso que o de 2015, a administração municipal já antecipa a possibilidade de fechar o mês de dezembro com um número de pacientes de síndrome respiratória aguda grave bem superior aos 986 do ano passado. “Temos 299 casos notificados até agora. Se a proporção for mantida, serão no mínimo 1 200”, diz Padilha. “Em um panorama mais agudo, pode chegar a 1 500”, completa.
Dentro dessa margem, o poder público tem meios para dar conta da situação sem grande alvoroço. O problema é o quadro ultrapassar as previsões mais pessimistas. Há três anos, a capital teve 3 601 casos da síndrome. Em 2009, no auge da gripe suína, foram 7 006. “É impossível preparar-se para uma pandemia”,diz o secretário estadual de Saúde, David Uip. “Mas, mesmo sem estrutura para atender todo mundo, será preciso dar um jeito, caso ocorra o pior.”
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Quem não pretende esperar por essas ações das autoridades, como a antecipação da campanha de vacinação, pode procurar clínicas privadas, onde já é possível encontrar a versão 2016 do remédio. O valor da dose varia de 100 a 180 reais, em média (veja o quadro abaixo). Recomenda-se ficar atento, pois a versão de 2015 continua em circulação. “Em relação ao H1N1, não há grande diferença”, explica Uip. A questão aqui é garantir a imunidade para as outras ameaças que pipocam pelo ar. “A cada ano, a Organização Mundial de Saúde forma o coquetel com os vírus que foram mais frequentes na temporada anterior”, esclarece Alexandre Padilha. “Se o usuário tomar uma vacina antiga, o ideal é repetir a dose, reforçando-a com a nova”, completa.
A procura pelo medicamento nas clínicas particulares aumentou bastante. Nesse circuito, além da versão trivalente, está disponível a tetravalente, que imuniza também contra o Influenza B/Phuket. Na quarta (30), a Clinivac, no Itaim, apresentava fila de quatro horas desde o começo da manhã. Nem todos os endereços conseguem dar conta da demanda. “Na terça passada, recebi um estoque de 500 frascos, que acabou em oito horas”, afirma o médico Marun David Cury, dono da Clínica Infantil Santa Isabella, na Chácara Santo Antônio. “Se tivesse 5 000, teria vendido tudo.” Nesse dia, a chef de cozinha Ticiana Juan pôde finalmente tomar a dose na Humana, em Moema, após mais de uma semana de procura ininterrupta. Dessa forma, obteve imunidade para a filha Sophie, que, aos 4 meses, ainda não tem idade para receber a vacina. “Aproveitei e levei meu marido,minha mãe e três funcionários.”
Em vários prontos-socorros daqui, tornou-se praxe a distribuição de máscaras cirúrgicas já no preenchimento da ficha de atendimento. O Sírio-Libanês, na Bela Vista, é o campeão de casos notificados,com 219 até terça (29). A alta demanda tem sido contornada com o reforço na equipe médica e três novos postos de vacinação. Em Higienópolis, o Samaritano registrou 207 pacientes do tipo desde o início do ano. “Em março, houve um aumento de pelo menos 50% no índice de pessoas com sintomas gripais”, conta a infectologista Bianca Grassi. A instituição reformulou uma área, que desde dezembro estava destinada a receber pacientes de dengue, para isolar quem chega com quadro de gripe. As ações, porém, nem sempre são eficientes para evitar filas e longas esperas. “Fiquei quatro horas lá e não consegui ser atendido”, relata o engenheiro Adriano Martins, que procurou o hospital no último dia 21. “Segui para o Oswaldo Cruz, na Bela Vista, e lá fui examinado depois de uma hora e meia.
A saga de Martins estava longe de terminar.Com a receita médica em mãos,começou a peregrinação para comprar oantiviral oseltamivir (comercializadocomo Tamiflu) nas farmácias. “Busquei oremédio em dez endereços e não o achei”,diz. “Só o encontrei em um posto municipal do Bom Retiro.” Único medicamento considerado capaz de matar o H1N1, oTamiflu desapareceu das prateleiras noúltimo mês. Na semana passada, a reportagem de VEJA SÃO PAULO não conseguiu encontrá-lo em nenhuma das maisde dez farmácias localizadas na região da Avenida Paulista. Segundo a fabricante Roche Brasil, houve um aumento inesperado na demanda na segunda quinzena de março. “Novos lotes devem chegar nestemês”, informou, em nota. Nos serviços públicos, como as unidades de AMA da prefeitura, no entanto, o material não estáem falta. No momento, os estabelecimentos dispõem de 413 800 comprimidos de oseltamivir, estoque considerado suficiente para os próximos três meses. Os hospitais estaduais também contam com lotes. Em todos, basta apresentar uma receitapara receber o produto. “Tomar o remédio até 48 horas depois de ter contato comum contaminado pode prevenir a doença”,diz Caio Rosenthal, infectologista do Hospital do Servidor Público Estadual.
Mesmo quem consegue ser atendidonos hospitais, e, nesse caso, tem acesso ao medicamento, passa por sufoco. Com trigêmeos de 1 ano e 9 meses, a veterinária Cinthia Torres morou por doze diasno Hospital Santa Catarina, na Bela Vista, para acompanhar o filho Pedro, em tratamento contra a doença. Durante esse período, os dois foram isolados do resto da família, pelo alto risco de contágio. “Meu marido ficou em casa comminhas filhas, Bruna e Julia”, relembra. “Os três choravam, queriam nos encontrar, mas não podiam.”
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A proliferação da doença afetou a rotina de algumas empresas na capital. A Procter & Gamble, por exemplo, encomendou seus lotes de vacinação mais cedo do que o habitual e, nos próximos dias, deve aplicar o medicamento em seus 700 funcionários na cidade. Na mesma linha, o Serviço Social da Indústria de São Paulo (Sesi-SP) antecipou sua operação para a segunda quinzena deste mês. No estado, serão 310 empresas e 115 000 doses, com 60% do total concentrado na Grande São Paulo. A Sky, que enfrentou um pequeno surto interno, promoveu várias iniciativas para orientar seus colaboradores com dicas de prevenção e de identificação dos sintomas.
O surto também mexeu com o cotidianode uma série de escolas na cidade. Na terça (29), ao identificar oito contaminados entre os seus 900 alunos, a direção do Colégio Palmares, em Pinheiros,enviou um comunicado aos pais solicitando que mantenham em casa as crianças com sintomas de gripe. Desde então, passou a deixar as salas de aula com portas e janelas abertas, e a distribuir recipientes de álcool em gel pelo prédio. “Além da dedetização diária contra o mosquito Aedes aegypti, agora tem mais essa”, lamenta a coordenadora Andrea Marina Diniz. No Albert Einstein, em Interlagos,um novo caso surge por dia desde a segunda quinzena de março. Dos 1 400 alunos, treze estudantes e um funcionário foram infectados. A instituição promete uma campanha de vacinação para os próximos dias. “Gostaríamos de já ter iniciado o programa, mas, como o produto está em falta, teremos de esperar”, conta a diretora Roberta Valverde.
A explosão de casos na capital levou ainda a um curioso fenômeno. Muitas celebridades incluídas na lista de vítimas do H1N1 têm usado as redes sociais para narrar o cotidiano com o vírus. “Dor espalhada por todo o corpo. É mais fácil encarar o Anderson Silva e o Mike Tyson juntos”, definiu o apresentador de TV Marcelo Rezende, na tarde da quarta (30) no Instagram, um dia depois de receber o diagnóstico. Na primeira semana de março, o humorista Tom Cavalcante usou a mesma rede para tranquilizar os amigos, depois de passar uma semana internado no Sírio-Libanês com a mulher Patricia e a filha Maria Antonia. Ele foi o primeiro a apresentar os sintomas, durante uma viagem da família a Orlando, nos Estados Unidos, em fevereiro. Por causa da doença, o artista remarcou quatro shows no interior do Estado. “A sensação é que um caminhão passou por cima de mim”, comparou. Na casa da dermatologista Ligia Kogos, todo mundo caiu de cama, incluindo seu marido, o ginecologista Waldemar Kogos, seu filho, o administrador de empresas Paulo Kogos, e a empregada, Zenaide Almeida dos Santos.“Os três tiveram um quadro forte e, desde segunda, estou com uma gripe comum, mas me mantenho em repouso por precaução”,conta Ligia. Já a atriz Lara Hassum cancelou uma apresentação da peça Memórias (Não) Inventadas,no teatro Viga Espaço Cênico, na segunda (28), por causa da gripe. “Tive 39 graus de febre, muita tosse e dor nas costas. Fui ao hospital e recebi o diagnóstico”,conta. “Voltei a trabalhar na terça, mas aí foi a vez de a minha mãe cair de cama.”
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