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As propostas para melhorar a vida dos 20 000 moradores de rua da capital

Após número de sem-teto dobrar na cidade desde 2000, um estudo inédito revela os dramas dessa população

Por Adriana Farias Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 14 fev 2020, 16h04 - Publicado em 20 abr 2018, 06h00
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  • Na capital, há mais de 20 000 pessoas morando nas ruas, segundo estimativa da prefeitura. É o equivalente a duas vezes a lotação do Ginásio do Ibirapuera. São quase 5 000 a mais do que o registrado no censo de 2015 e o dobro do computado em 2000, de acordo com a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). Nem o boom econômico da década passada impediu a multiplicação daqueles que se enrolam em cobertores sob marquises.

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    “Qualquer um que tenha sofrido com a pobreza sabe que é extremamente caro ser pobre”, disse o escritor e ícone do movimento negro americano James Baldwin, em 1961. O que o poder público gasta em abrigos, saúde, assistência social e segurança não parece reverter, de fato, a condição de quem tem saúde precária e perdeu o contato com família, amigos e trabalho.

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    A população sem-teto é formada por 40% de ex-presidiários. Um estudo inédito encomendado pela prefeitura, em 2015, e agora concluído averiguou os porquês do crescimento desse contingente. A pesquisa qualitativa foi coordenada pelos psicanalistas Emília e Jorge Broide, especialistas da USP e da PUC, além de dez ex-moradores de rua, que atuaram como pesquisadores de campo. O livro com os resultados do trabalho será lançado em 11 de maio, às 19 horas, na Praça Dom José Gaspar, para que os entrevistados possam participar do evento.

    Praça da Sé, no centro: consumo de drogas (Leo Martins/Veja SP)

    Em média, 105 000 presos deixam as cadeias do estado todos os anos. Nesse momento, eles geralmente são obrigados a pagar uma multa que integra a sentença, cujo valor varia de 300 a 1 500 reais. O problema é que boa parte deles não sabe da existência dessa dívida e que, caso ela não seja quitada, a pena não é considerada efetivamente cumprida, aos olhos do Estado. Isso impede essas pessoas de tirar documentos, deixando-as na clandestinidade.

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    “Na ausência de uma política de transição para o convívio social, muitos vão parar na rua”, diz Jorge Broide. “Depois chegam aos abrigos com as regras e a violência das facções de presídios, o que complica o trabalho dos agentes sociais.”

    Para agravar a situação, os sem-teto são acometidos por problemas como depressão (30% deles), consumo diário de álcool (57%) e de drogas (52%). Eles estão presentes em diversos bairros da cidade, bem além da Cracolândia. O fracasso das políticas na área tem levado muitos paulistanos a batalhar por respostas efetivas a essa tragédia social. Ao longo dessa reportagem, há várias propostas para transformar a condição de quem não sabe mais o que é ter endereço fixo.

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    1. Um teto para ter estabilidade

    Nove prédios e um terreno na região central foram desocupados pela Secretaria Municipal de Habitação para servir de moradia à população de rua até o fim do ano. De modo a viabilizar o plano, a pasta aguarda um aporte de 50 milhões de reais do governo federal para obras de reforma e requalificação dos imóveis. Uma fatia de 90% dos 441 apartamentos será destinada a pessoas que estejam em acompanhamento assistencial na prefeitura e possam oferecer 10% de sua renda mensal como contrapartida.

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    A grande novidade está relacionada aos 10% das vagas restantes, que serão designadas à implantação do conceito housing first (primeiro, casa) em São Paulo. Criado em 1992 nos Estados Unidos, o projeto procura levar diretamente para moradias pessoas em situação crônica de rua, sobretudo com problemas com álcool e drogas.

    Para isso, elas não precisam estar inseridas em tratamentos, mas devem aceitar visitas regulares de equipes de saúde e assistência social. “É polêmico, mas deu certo no exterior. Por que não tentar aqui?”, diz o secretário da Habitação, Fernando Chucre. Mas nem na prefeitura há unanimidade em torno da ideia. “Eu temo que virem os hotéis da Cracolândia, do programa De Braços Abertos, do ex-prefeito Fernando Haddad, com o tráfico tomando conta”, diz o secretário da Assistência e Desenvolvimento Social, Filipe Sabará.

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    O ex-morador de rua Darcy Costa, hoje coordenador estadual do Movimento Nacional da População de Rua (Leo Martins/Veja SP)

    O próprio criador do conceito argumenta que a alternativa, nesse caso, é instalar as pessoas em apartamentos de diferentes prédios. “Isso dificulta o controle pelo crime organizado”, diz o psicólogo greco-canadense Sam Tsemberis. Ele ainda afirma que tal modelo sai mais barato para os cofres públicos. “Em um grupo analisado, os custos anuais do governo americano caíram de 50 000 dólares, em gastos com serviços de emergência e abrigos, para 18 000 dólares, com as moradias”, diz.

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    Em Helsinque, na Finlândia, por exemplo, as 3 000 vagas existentes em albergues públicos foram fechadas nos últimos dez anos e substituídas por habitações. Em Lisboa, Portugal, a mesma estratégia reduziu a população de rua à metade entre 2015 e 2017. “Houve diminuição do uso de drogas e adesão aos serviços de saúde”, comemora Américo Nave, diretor da ONG Crescer, que administra o projeto denominado É uma Casa.

    2. O que ainda falta nos abrigos

    Enquanto o housing first paulistano não é implantado, a prefeitura opera com a política de abrigos. Para isso, capacitou 600 pessoas a trabalhar na abordagem nas ruas e adicionou o turno da noite, em 2017. Um grupo está atuando regularmente, por exemplo, na região do Viaduto Bresser, na Zona Leste, onde 52 famílias, com 179 homens, 72 mulheres e crianças, dormem em barracos de madeira. Ao todo, a rede dispõe de 105 centros de acolhida, totalizando 14 664 vagas.

    Centros temporários de acolhida em Butantã: por falta de bagageiro, pertences são acomodados em sacos de lixo (Leo Martins/Veja SP)

    Ou seja, mesmo que todas fossem ocupadas, ainda restariam no mínimo 5 400 pessoas sem proteção. Até o fim do ano, a prefeitura pretende ampliar essa oferta para 15 000, o que ainda não será suficiente para resolver a questão. Por mês, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social repassa 17,5 milhões de reais (6 milhões a mais do que em 2015) para as entidades conveniadas que gerenciam esses e outros serviços. Então, por que as pessoas continuam nas ruas?

    “A situação dos albergues é insalubre, um depósito de gente, com mais de 500 pessoas dentro de um espaço”, critica o ex-morador de rua Darcy da Silva Costa, atualmente coordenador estadual do Movimento Nacional da População de Rua. A política nacional para o sistema de acolhimento indica cinquenta pessoas como o número máximo de usuários nos equipamentos. “Ao menos 30% das reclamações referem-se à falta de vagas fixas, para casais e famílias, pois a maioria é para pernoite”, diz a defensora pública Fabiana Zapata, do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos.

    Centro de acolhida em São Mateus: fechado por dois meses para obras na tubulação contra incêndio e reaberto com falta de mobiliário (Leo Martins/Veja SP)

    Os conviventes também pedem flexibilidade de horário, especialmente quem trabalha, porque muitas vezes é preciso optar pela alimentação no abrigo ou pelo emprego. Diante dos problemas nesses locais, a prefeitura diz que se empenha em saná-los. “Estamos investindo 12 milhões de reais nas reformas”, diz o secretário de Assistência e Desenvolvimento Social, Filipe Sabará.

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    3. O desafio do emprego

    Cerca de 74% da população de rua trabalha para sobreviver, geralmente fazendo bicos e serviços informais que não geram renda suficiente para alugar um teto. No ano passado, a prefeitura implantou o programa Trabalho Novo, realizou capacitação emocional e reuniu 85 empresas parceiras que topassem fornecer vagas a esse grupo vulnerável.

    As professoras Susan e Juliana: mobiliário produzido por alunos de design em centro de integração (Leo Martins/Veja SP)

    A Defensoria Pública entrou na jogada e tem ajudado os egressos da prisão com pedidos de extinção da multa penal e regularização de documentos. Esse, porém, é um projeto ainda a ser firmado. Em 23 de março, a Secretaria Municipal do Trabalho informou que havia 1 804 sem-teto contratados, entre eles 43 no restaurante Coco Bambu, 114 no grupo Pão de Açúcar e 227 na empresa de limpeza Guima Conseco.

    Os números, no entanto, não batem com os divulgados pelas empresas. Metade dessas pessoas já havia sido desligada. No Coco Bambu, não restou ninguém. Na quarta (18), a prefeitura afirmou que 50% dos demitidos foram realocados.

    4. Inclusão e autoestima

    Diante das demissões, os moradores de rua buscam amparo no Centro de Inclusão pela Arte, Cultura, Trabalho e Educação (Cisarte), coordenado pelo ex-morador de rua Darcy Costa. Instalado desde 2016 sob o Viaduto Pedroso, que corta a Avenida 23 de Maio, o espaço oferece oficinas de peças de cimento e vidro e seminários. Em março, recebeu um centro de treinamento e um auditório equipado com mobiliário feito por 21 alunos de design da Ohio State University e da Universidade Mackenzie.

    Chuveiros itinerantes nos Estados unidos: dignidade a quem não tem onde morar (Divulgação/Veja SP)

    “Precisamos integrar os jovens a essa realidade para que eles a conheçam de perto e promovam impactos sociais”, afirma a professora americana Susan Melsop. Sua conterrânea Doniece Sandoval, fundadora da ONG Lava Mae, sabe bem disso. Na cidade de São Francisco, na Califórnia, ela teve a ideia de transformar ônibus de transporte público que estavam aposentados em banheiros itinerantes, com chuveiros. Depois, incrementou a frota de sete veículos com trailers e kits de higiene.

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    Em quatro anos, 10 000 moradores de rua foram beneficiados, totalizando 36 000 banhos, com o engajamento de mais de 800 voluntários. “Religamos as pessoas com seu senso de autoestima e dignidade. Elas saem de cabeça erguida.”

    5. Para quem quiser ser voluntário

    Com quatro anos de atividade, o grupo Entrega por SP atua diretamente na rua, pois muitos indivíduos não se encaixam na política dos abrigos. “Atendemos cerca de 1 200 pessoas por mês com 150 voluntários envolvidos”, conta Débora Rossi, uma das coordenadoras da agremiação, que distribui um kit com escova e pasta de dentes, garrafa de água, três preservativos, um par de meias, um pacote de biscoito, um sabonete e um sanduíche. Mas, para os integrantes do grupo, o mais precioso é o tempo que param para escutá-los. “Eles se sentem mais seres humanos”, diz Débora.

    O coletivo Sementes de Amor (Divulgação/Veja SP)

    Ter esse ouvido sensível também faz parte do trabalho emocional desempenhado há três anos pela turma do Sementes de Amor. São doze voluntários, entre eles terapeutas, psicólogos e assistentes sociais, que saem todo último domingo do mês por Pinheiros e Vila Madalena distribuindo atenção. “Há muitos talentos na rua, e vamos criar uma feira para eles fazerem a exposição de seus itens”, conta um dos membros, Ricardo Mezadri.

    Essa experiência de ouvir a necessidade da rua levou o empreendedor social Lucas Caldeira a angariar 61 645 reais por meio de uma vaquinha na internet e ganhar quatro máquinas de lavar com o objetivo de implantar um projeto social de lavanderia e vestiário. “Muitas roupas se perdem porque eles não têm onde lavá-las”, diz. A dificuldade agora está na busca do imóvel a ser alugado para dar início ao programa. Uma dificuldade extra, diante das constantes negativas. “Ao saber do que se tratava, a proprietária de um espaço chegou a cobrar 30% a mais.” Quem quiser colaborar pode entrar em contato pelo endereço: emaildoprojetolavanderia@gmail.com.

    Lucas Caldeira, do projeto Lavanderia (Antônio Milena/Veja SP)

    Se você se interessou pelo Entrega por SP, é possível encontrar o grupo na Praça Horácio Sabino, em Pinheiros, em 26 de abril, às 20 horas. Se a sua cara é mais o Sementes de Amor, eles aguardam em amorsementes@gmail.com. A Pastoral do Povo da Rua, vinculada à Arquidiocese de São Paulo, também recebe doações, na Rua Djalma Dutra, 3, na Luz. Haverá ainda a possibilidade de se envolver por meio do aplicativo SP Mais Humana, que será lançado pela prefeitura até junho. O usuário poderá escolher o abrigo desejado e fazer doações em variadas categorias, como alimentos, roupas, serviços jurídicos, empregos ou o seu tempo.

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    6. Recuperar a saúde

    Gastos com terapia e antidepressivos são proibitivos para essa população, que pode ser expulsa de casa por apresentar transtornos mentais ou piorar seu quadro no meio do caos das ruas. O estudo do casal Broide aponta o preconceito e a discriminação nos postos de saúde e a dificuldade de acesso ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).

    Em visita ao Centro Temporário de Acolhimento do Butantã em 19 de março, a reportagem presenciou um senhor sofrendo uma crise de abstinência de álcool por cerca de três horas, enquanto a ambulância não chegava. Não havia ninguém da área médica, pois os albergues não dispõem desses profissionais. Para mais da metade dos sem-teto, o uso de álcool e drogas é anterior à situação de rua.

    Centro temporário de acolhida na Liberdade teve problemas na rede de esgoto: 30% das reclamações feitas na defensoria Pública relatam problemas nos albergues (Leo Martins/Veja SP)

    Casos assim podem ser encaminhados a hospitais psiquiátricos ou a Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Mas apenas 35% completam as cerca de quatro semanas de desintoxicação. “Essa porcentagem sobe de forma gradual”, pondera o psiquiatra Arthur Guerra, coordenador do programa Redenção. “Existem centros que estão ociosos por falta de qualificação”, diz a pesquisa dos Broide.

    É necessário capacitar profissionais e levar os serviços do Caps para fora, ao encontro do usuário. A Secretaria Municipal da Saúde informou que há 266 profissionais do Consultório na Rua, entre eles médicos e enfermeiros, que fazem atendimento nas ruas. Além disso, desde 2017 foram instalados cinco equipamentos para acolher usuários de drogas, nas regiões da Luz, da Vila Leopoldina e do Brooklin, com 100 vagas cada um. Apelidados de “contêineres” pela sua estrutura provisória, eles estão com 100% da capacidade ocupada.

    7. A vida depois da rua 

    O catarinense Marcos Domingues, de 26 anos, saiu de casa adolescente devido ao alcoolismo de parentes e veio parar em São Paulo. Morou três anos na rua, até ser contratado para trabalhar como estoquista na empresa da família de Bruno Saraiva, membro do coletivo Entrega por SP. “Tive ajuda para pagar o primeiro aluguel numa pensão na Lapa e isso possibilitou que eu me ajeitasse e conseguisse o emprego em que estou há seis meses”, comemora ele, que, agora, devolve a ajuda que recebeu auxiliando ex-colegas de áreas como a Praça da Sé.

    O ex-morador de rua Jonas Batista: compra de Kombi para trabalhos de reciclagem (Reinaldo Canato/Veja SP)

    Essa região também foi a morada de Jonas Manuel Batista, 54, por quase duas décadas. Ele deixou sua família portuguesa de classe média devido ao envolvimento com drogas. Nas ruas, foi preso quatro vezes por assalto. Viu sua vida mudar de rumo há três anos, quando o dono de um imóvel na Mooca permitiu que ele morasse no prédio vazio, para cuidar do local.

    “Sofri muita violência, vi de perto a morte e agarrei a chance”, diz. A partir dali, parou de usar entorpecentes e com dinheiro de reciclagem comprou uma Kombi 1985 por 3 000 reais para realizar carretos. Fatura 3 000 reais por mês, o que lhe permitiu alugar um quarto na Mooca. “Nunca mais quero ter de usar um papelão como cama.”

    O catarinense e ex-morador de rua Marcos Domingues, 26 anos: há seis meses empregado (Reinaldo Canato/Veja SP)

    Perfil da população de rua 

    Alguns dados do censo de 2015 da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas

    40% são egressos do sistema penitenciário

    52% são usuários diários de drogas

    74% trabalham para sobreviver, com bicos

    Investimento público 

    A atuação da prefeitura nessa área

    105 abrigos existem aqui

    17,5 milhões de reais é o repasse mensal para a gestão dos serviços

    441 imóveis serão alocados para uso de moradores de rua até o fim do ano

     

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