Seca afeta 6 milhões de pessoas no interior do estado
A falta de água causa doenças, prejuízo de 200 milhões de reais e saques nas regiões Norte e Nordeste de São Paulo
Ruas sujas e empoeiradas, banhos diários de caneca, prejuízo no comércio, surto de doenças e ânimos inflamados. Eis a rotina de aproximadamente 6 milhões de moradores do grupo de 37 municípios no interior mais afetados pela seca. As prefeituras de Tambaú e Cordeirópolis decretaram estado de calamidade pública, que caracteriza desastres de grande porte responsáveis por esgotar os recursos da administração local. Artur Nogueira, Casa Branca e Valinhos estão em situação de emergência, um estágio mais brando diante de uma fatalidade. Na prática, funciona como um aviso de alerta à população. Em Itu, outra cidade bastante atingida, ocorrem cenas dignas dos filmes apocalípticos de Hollywood sobre o esgotamento de recursos naturais. No local, os caminhões-pipa passaram a receber escolta da polícia depois da ocorrência de assaltos.
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Localizada no nordeste paulista e distante 270 quilômetros da capital, Tambaú é uma das cidades que mais sofrem com a estiagem. Seus 23 500 moradores enfrentam um surto de dengue e virose porque muita gente, na afobação, tem estocado água de qualquer jeito. Em abril, começou o racionamento. No início,o fornecimento ocorria dia sim, dia não. Há três meses, a política ficou mais severa. Agora, as torneiras permanecem vazias durante 48 horas e são abastecidas por dezessete. Segundo a Associação Industrial e Comercial de Tambaú, a cidade acumula um prejuízo de mais de 4 milhões de reais. “Falta água para produzir cerâmica, o principal item da economia do nosso município. As empresas acabam demitindo funcionários, e isso gera recessão”, diz Marcos Stocco, presidente da entidade. A cidade tem 65 fábricas nesse setor e, segundo dados do sindicato dos trabalhadores da categoria no local, cerca de 25% dos 4 000 empregados foram demitidos neste ano.
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A região é abastecida por duas represas. Uma delas secou completamente em julho e a outra só não tem o mesmo destino porque diariamente caminhões-pipa enchem o local com água do Rio Macuco, manobra custeada com parte da ajuda de 2 milhões de reais recebida do governo do estado. Mas, para resolver o transtorno de vez, as autoridades estimam um investimento de 15 milhões de reais para reformar o encanamento de Tambaú, datado de 1930 e administrado pelo Departamento Municipal de Água e Esgoto (Demaet), que teve poucos investimentos ao longo das últimas décadas. “O problema não começou agora, mas a população não entende. Sou xingado nas ruas, furaramos pneus do meu carro e houve manifestação na frente da minha casa”, reclama o prefeito Roni Donizetti Astorfo. A exemplo de seus conterrâneos, ele garante ter mudado a rotina para economizar. “Desde agosto, só me lavo de caneca e reutilizo a água do banho para dar descarga”, conta. “Também faço a barba dia sim, dia não.”
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Além dessas medidas práticas, Astorfo,que vem de uma família bastante religiosa, apela para outras forças. Tem andado com um tercinho enrolado no pulso esquerdo e pede orações à população. O segundo nome do prefeito foi escolhido por seus pais para homenagear o padre Donizetti (1882-1961), padroeiro da cidade, que está com um processo de beatificação no Vaticano. “Só Deus mesmo para ajudar a gente”, desabafa Maria Eni Tezzei da Silva, aposentada de 71 anos,moradora da Vila Padre Donizetti, um dos bairros mais prejudicados. O local chega a ficar uma semana sem água. Desde julho, Eni lidera uma novena para chamar a atenção de São Pedro. Todo fim de tarde, um grupo de aproximadamente dez fiéis se reúne aos pés do cruzeiro da paróquia São Sebastião, reza o terço e lê o capítulo Em Tempos de Calamidade e Atribulação do livro Manual de Nossa Senhora Aparecida. Para finalizar o ritual, cada pessoa joga um copo de água na cruz. “Quando chegou a Tambaú, em 1926, o padre Donizetti também sofreu com uma estiagem semelhante e, após uma novena, choveu e tudo se recuperou”,explica Anderson Godoi de Oliveira, pároco do Santuário Nossa Senhora Aparecida. Apesar de manter a fé, ele acredita que a seca só vai acabar quando as pessoas aprenderem a lidar com o meio ambiente. A exemplo de Tambaú, boa parte das cidades castigadas fica nas regiões norte e nordeste de São Paulo. Muitas delas são abastecidas por nascentes, que secam mais rápido com uma estiagem, devido ao volume menor de água. “As consequências foram bem graves, e esses locais vão levar aproximadamente uma década para se recuperar”, afirma Hiroshi Paulo Yoshizane, professor de topografia, hidrologia e solos da faculdadede tecnologia da Universidade Estadualde Campinas (Unicamp). Outro complicador é o mau planejamento urbano. A Sabesp cuida do abastecimento de água da região metropolitana e de apenas algumas cidades do interior. No restante dos casos, o assunto fica a cargo das prefeituras. Poucas se planejaram para uma crise tão grave.
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As consequências desses erros são enormes. Desde maio, a hidrovia Tietê-Paraná está paralisada, o que afeta diretamente os municípios de Barra Bonita, Pederneiras, Araçatuba, Jaú, Santa Maria da Serra, Anhembi e Conchas. O prejuízo estimado pelo Departamento Hidroviário do Estado é de cerca de 200 milhões de reais no período. Em Socorro, o abastecimento continua normal, mas há quatro meses o baixo nível do Rio do Peixe impede o rafting, a principal atividade turística da região. “Passamosa investir em cavalgadas e water trekking, que são as caminhadas pelo leito”, diz Juneca Ramalho. Há treze anos à frente da Rios de Aventura, ele estima um prejuízo mensal de 30% coma interrupção do rafting. Em junho, a Bacia do Cascalho, que abastece Cordeirópolis, começou a baixar até 5 centímetros por dia. O prefeito Amarildo Zorzo decretou calamidade pública e o Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Cordeirópolis (Saae) passou a captar água em quatro cavas de mineradoras desativadas quando a represa atingiu 30% da capacidade. “Parece muito, mas não é”, afirma Zorzo. “A cidade poderia se desabastecer, precisava de obras emergenciais e, com a decretação da calamidade pública, obtive respaldo jurídico para não realizar licitações, processo que levaria meses”, explica. Em novembro, o prefeito vai tentar renovar a medida até maio de 2015. A cidade recebe água a cada 24 horas e, como ocorre na maioria dos locais afetados pela seca, por lá é proibido lavar carro, calçada e quintal, sob pena de multa de 500 reais. A população tem se adaptado. “Nos dias do rodízio, as crianças não tomam banho aqui”, conta Gisele Cicolin, diretora da creche municipal.
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Em Itu, o clima é de guerra. Desde o fim de setembro, pelo menos uma vez por semana há uma manifestação. Nas mais recentes ocorreram os assaltos aos caminhões-pipa. A população, que já jogou ovos, tomates e pedras na Câmara Municipal, exige a declaração de estado de calamidade pública e questiona com uma ação popular a licitação que contratou a empresa Águas de Itu, concessionária que administra o recurso no município desde 2006. De acordo com a companhia, as represas estão com aproximadamente 4% de sua capacidade e o rodízio ocorre a cada 24 horas. “Não faz sentido a prefeitura declarar calamidade se ainda há água e os investimentos são realizados pela concessionária”, argumenta Marco Antonio Augusto, responsável pela defesa civil municipal. Segundo ele, 34 caminhões-pipa vêm enchendo os reservatórios das casas nos dezessete bairros altos, que registraram desabastecimento por mais de uma semana. Devido às queixas, até novembro uma nova empresa, a Águas do Brasil, assumirá o controle do fornecimento de água para a cidade, e promete finalizar uma obra de transposição das águas do Ribeirão Mombaça para a Estação de Tratamento de Água Rancho Grande, ao custo de 30 milhões de reais. O problema é que tudo ficará pronto em 2015, na melhor das hipóteses. “Minhas torneiras estão secas e, apesar disso, o valor da conta aumentou”, reclama Junior Pereira, que há quinze anos é dono da Padaria Cidade Nova, no bairro de mesmo nome, um dos mais afetados. Ele proíbe seus clientes de usar o banheiro, teme os saques que ocorreram no comércio por ali, compra galões de água mineral para fazer pão e acumula um prejuízo mensal de 20% no faturamento.“Pode não ser calamidade pública, mas é o inferno”, define.
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