Os últimos retoques no painel de Di Cavalcanti
Monumental trabalho de restauro da obra do pintor brasileiro na fachada do Teatro Cultura Artística se aproxima do fim
Não se assuste com a explicação: “Encontramos as tesselas em estado crítico e muitas não puderam ser salvas. De acordo com o nosso diagnóstico, elas foram degradadas por doze patologias, como eflorescência e sujidade”. As palavras que a arquiteta Isabel Ruas usa para descrever o processo de restauração do painel criado por Di Cavalcanti para a fachada do Teatro Cultura Artística, destruído por um incêndio em 2008, costumam despertar reações semelhantes às provocadas por médicos em pacientes: suscitam mais dúvidas do que respondem. Para compreender a explanação da especialista, é preciso franzir as sobrancelhas e pedir a ela que repita tudo, desta vez traduzindo para o português falado no país. Só assim para entender que tesselas são pastilhas de vidro artesanais (o artista utilizou cerca de 1 milhão delas); que eflorescência é um fenômeno provocado pela chuva e resulta em manchas escuras e claras; e que sujidade é apenas um sinônimo para a velha sujeira. O vocabulário técnico, porém, não passa de um detalhe diante da complexidade da tarefa enfrentada desde junho passado por Isabel e sua equipe de doze pessoas, que inclui profissionais como mosaicistas e restauradores. “Esta é uma de minhas missões mais delicadas, e 80% dela está concluída”, afirma.
Batizado de Alegoria das Artes, o trabalho do grande pintor brasileiro foi inaugurado em março de 1950, junto com o Cultura Artística, na Rua Nestor Pestana, no centro. O mural, com 48 metros de comprimento por 8 metros de altura, jamais foi conservado adequadamente. Com a ação do tempo e da chuva, suas vigas de ferro estruturais se oxidaram e nacos de cimento e de argamassa foram se soltando. Limo e sujeira penetraram nos vãos entre a maior parte das pastilhas coloridas, muitas esmaecidas e a ponto de cair. “Todos os reparos executados no local ao longo das últimas décadas devem ter sido realizados por pedreiros, e não por profissionais especializados em mosaicos”, acredita Isabel. “Alguns trechos ganharam remendos desalinhados.”
Resultado: em razão de restaurações preguiçosas, o desenho acabou sendo modificado com o passar dos anos. Descobriu-se, por exemplo, que os dedos de uma das mulheres da obra viraram uma luva, dessas utilizadas para retirar travessas do forno. Numa confusão semelhante, por falta de peças pretas, o cavalete de um violão transfigurou-se em um pequeno triângulo. A equipe de Isabel constatou ainda que as pastilhas marrons, utilizadas em trinta formas, foram afixadas na verdade nos anos 70. A suspeita é que elas tenham substituído peças de outra cor. Mas não se sabe qual — as fotos existentes do desenho original de Di Cavalcanti são em preto e branco. Não havia outro caminho a não ser fazer uma escolha arbitrária, até porque o autor morreu em 1976. “Optamos por trocar o marrom pelo dourado, presente em diversos pontos”, explica Isabel.
Tombada pelo Condephaat, a fachada do Cultura Artística não foi atingida pelo incêndio de 2008. Sua reforma, orçada em 1,7 milhão de reais e com previsão para terminar no dia 30 de julho, é a primeira etapa da recuperação do complexo (visitas para ver o painel podem ser agendadas pelo telefone 5083-4360). A segunda fase, a reconstrução do imóvel, ainda não saiu do papel. “O projeto arquitetônico está sendo definido e apenas a limpeza do terreno foi finalizada”, informa Eric Klug, relações-públicas da Sociedade Cultura Artística, entidade mantenedora do teatro. Concebido pelo arquiteto Paulo Bruna, discípulo de Rino Levi, autor do desenho original, o novo prédio terá sete andares e 10.500 metros quadrados de área construída. A obra custará 30 milhões de reais, valor já amealhado por meio de doações. Outros 45 milhões de reais ainda precisam ser captados para a etapa final, de acabamento, e para a compra de equipamentos como poltronas e elevadores. Os prazos, no entanto, seguem indefinidos.
OBRA COMPLEXA
Os principais desafios enfrentados na reforma do mural, inaugurado em 1950
– Entre a maior parte do 1 milhão de pastilhas havia limo e sujeira incrustados
– Nacos de cimento e de argamassa haviam se soltado e trechos da parede estavam ocos
– As vigas de ferro estruturais estavam enferrujadas
– Reações químicas provocadas pela água da chuva deixaram as pastilhas manchadas e a ponto de cair
– Na falta de peças de reposição, em uma antiga e malfeita restauração, o cavalete de um violão foi transformado em um triângulo
– O mesmo aconteceu com a mão de uma das figuras, que virou uma “luva” devido a um remendo preguiçoso