As mordomias da Assembleia Legislativa, que custa 1,3 bilhão por ano
Em uma saleta de 10 metros quadrados, só um órgão supérfluo da casa tem 50 funcionários e custo de 10,5 milhões de reais
Responsável por criar, revogar e alterar as leis do estado, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) ficou conhecida nos últimos anos como uma extensão do Palácio dos Bandeirantes. Parte disso é resultado da limitada atribuição constitucional da Casa, pois um grande número de leis no Brasil é federal ou municipal. Com um campo de trabalho reduzido e sem fiscalizarem o Executivo como deveriam, os deputados acabam se debruçando sobre temas irrelevantes. Na legislatura passada, entre 2015 e 2018, dos mais de 2 200 projetos apresentados, metade se referia a denominação de vias, homenagem a personalidades e instituição de datas comemorativas, como a que incluiu a Festa da Jabuticaba, realizada em Casa Branca, a 220 quilômetros da capital, no calendário turístico paulista. Prioridades em tempos de crise.
A inoperância legislativa não ocorre por falta de dinheiro. Com um salário de 25 300 reais, o parlamentar estadual ainda pode gastar mais de 33 000 reais por mês com despesas como aluguel de salas comerciais, combustível e correios. A cota para contratar funcionários é de 160 000 reais mensais. Além disso, juntos, eles podem distribuir 57 milhões de reais entre os 3 333 servidores da Casa. A verba, chamada de gratificação especial de desempenho (GED), cresceu 74% nos últimos quatro anos. O custo da Assembleia é de 1,3 bilhão de reais por ano, mais que os orçamentos somados das secretarias estaduais de Cultura, Esporte, Emprego e Energia.
VALE REGALIAS
Quanto cada deputado custa por mês
25 300 reais é o valor do salário
33 000 reais é o limite de gastos com gráfica, hospedagem, comida, combustível e correio
160 000 reais é o montante dos salários de assessores
No térreo do Palácio 9 de Julho, a sede da Alesp, nas imediações do Parque Ibirapuera, há uma boa demonstração de que austeridade e cortes de gastos não chegaram lá. Com um nome mais do que pomposo, o Núcleo de Avaliação Estratégica (NAE) tem a função teórica de analisar o desempenho do governo do estado. Para essa missão, conta com cinquenta servidores, que embolsam salários entre 8 000 e 23 000 reais. Na prática, no entanto, ocupa uma saleta de 10 metros quadrados com cinco computadores, onde só cabem 10% dessa trupe. A atuação do órgão, criado em 2015 pelo ex-deputado tucano Fernando Capez, resume-se a encaminhar as reclamações recebidas pela ouvidoria da Casa. Os temas variam: de queixas de descarte de entulho na Rua Oscar Freire (uma competência municipal) a relatos de má prestação de serviço por parte de empresas privadas de telefonia. No fim do mês, a conta do NAE com salários e benefícios — cada funcionário ganha 45,40 reais de vale-refeição por dia — é de 820 000 reais. Seu custo anual, de 10,5 milhões de reais, representa 55% de todo o orçamento destinado neste ano ao Memorial da América Latina, na Barra Funda (que tem uma vez e meia o tamanho de toda a Assembleia).
Na quarta-feira (22), VEJA SÃO PAULO acompanhou parte de uma reunião entre doze funcionários do chamado Setor de Meio Ambiente do Núcleo de Avaliação Estratégica. O encontro foi realizado em uma sala anexa, pois a do órgão não comportava o grupo. Durante a conversa, o chefe do NAE, o perito criminal aposentado Paulo Roberto Bonjorno, questionou seus subalternos a respeito de casos em andamento. Em determinado momento, perguntou sobre um que envolve fornecimento de água da Sabesp em cidade do interior. Silêncio, ninguém sabia do que se tratava. Rapidamente, mudou-se de assunto.
Situação semelhante ocorre na 1ª Secretaria da Alesp. Segundo setor na hierarquia da Casa — atrás apenas da presidência —, o órgão, chefiado pelo deputado Enio Tatto (PT), possui 72 funcionários, mas dispõe de catorze computadores. Para não correr o risco de perder vagas por não ter onde abrigar as pessoas, o comando da Assembleia encontrou uma solução bem suspeita. Em 2005, aprovou no regimento interno a possibilidade de realocar funcionários da presidência e das quatro secretarias para outras áreas, como a Comissão Permanente de Licitação e o Departamento de Finanças. São quase 170 postos que vão parar em outros locais sem nenhum critério. A prática cria uma caixa-preta, pois ninguém sabe para qual área os servidores estão efetivamente trabalhando. “Esses setores deveriam ser ocupados por quadros técnicos, não por comissionados. Isso claramente revela um desvio de função, que é vedado pela Constituição”, afirma o advogado Maurício Zockun, professor de direito administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). A reportagem só conseguiu contar as máquinas da 1ª Secretaria após muita insistência e várias negativas — apesar de a informação ser direito do cidadão. Já na 2ª Secretaria, sob o comando do deputado Milton Leite Filho (DEM), não houve jeito: o pedido foi negado pelo chefe de gabinete Ricardo Carlos Koch Filho.
BOQUINHA PARLAMENTAR
Derrotados na última eleição, alguns ex-deputados ganharam cargos com salários de até 15 000 reais
> Adriano Diogo (PT)
> Ana do Carmo (PT)
> Antonio Mentor (PT)
> Carlos Neder (PT)
> Chico Sardelli (PV)
> Edson Griboni (PV)
A possibilidade de livre nomeação abre espaço para a contratação de ex-deputados. Na 1ª Secretaria, quatro antigos parlamentares estão lotados. A última a entrar foi Ana do Carmo (PT), derrotada nas eleições de 2018. Onze dias depois de entregar o mandato, em março deste ano, ela foi contratada como assessora parlamentar, com um salário de 15 000 reais por mês. Procurada nos dias 20 e 24 de maio, Ana não foi encontrada nas dependências da Assembleia. Nas redes sociais, ela costuma postar fotos em que aparece visitando cidades da Grande São Paulo, seu reduto eleitoral, com deputados de seu partido. “Dia de visitas a pessoas queridas e aguerridas de São Bernardo”, publicou no dia 1º de abril, uma segunda-feira. Por telefone, a petista afirma que cumpre jornada de quarenta horas semanais e nega que faça promoção política à custa do Erário durante o expediente.
Outros casos de ex-deputados que atuam como se ainda fossem donos de mandato podem ser encontrados facilmente. Francisco Antonio Sardelli (PV) conseguiu emprego na liderança do PR um mês depois de se despedir de seu gabinete. Com 10 000 reais por mês de salário, mantém em Americana, sua cidade natal, um escritório político para atender às demandas da população. Procurado por telefone em quatro oportunidades na Alesp, não foi localizado. Nas redes sociais, Chico Sardelli, como é conhecido, costuma postar fotos e vídeos produzidos no horário de trabalho. Em 13 de abril, publicou um passeio de barco na região de Atibaia. “De olho na represa, prontos para resolver os problemas. E vamos!”, postou. “Pago o escritório com meus recursos e não atuo como se fosse parlamentar”, diz. “As pessoas continuam me procurando devido aos três mandatos na Assembleia e outros dois em Brasília.”
Os indícios de beneficiamento próprio com dinheiro público não se resumem a ex-deputados. O advogado Luciano Braz de Marques, funcionário da liderança do PSB desde 2017, recebe 21 000 reais por mês da Alesp, mas cumpre expediente em Várzea Paulista, a 50 quilômetros da capital, onde mantém um escritório. Sua rotina é constantemente ostentada em postagens no Instagram. Desde que Marques passou a atuar na Assembleia, sua carreira prosperou. De 2018 para cá, o advogado tornou-se responsável por 33 processos em tramitação na Justiça. “Com a internet, consigo dar retornos a distância. Mesmo assim vou toda semana à Assembleia”, afirma. Após ser procurado pela reportagem e questionado sobre não dar expediente no Palácio 9 de Julho, Marques comunicou na última terça-feira (28) que pediu exoneração do cargo.
Outro caso parecido foi parar na Justiça. Em abril, Raissa Caroline Lima Tavolaro, mulher do ex-vice-presidente de jornalismo da TV Record e atual presidente da CNN Brasil, Douglas Tavolaro, teve as contas bloqueadas. Lotada na liderança do PRB com um salário mensal de 15 000 reais, ela postava fotos no Instagram em viagens ao exterior em horário de expediente. Acabou exonerada. Em nota, ela informou que as viagens foram autorizadas pelos gabinetes e eram possibilitadas graças a compensações de trabalhos extras. Atualmente, o Ministério Público tem seis investigações contra atuais ou ex-deputados por práticas ilegais na Alesp. Uma delas, que virou processo criminal na Justiça, envolve a ex-deputada Clélia Gomes (Avante), acusada de se apropriar de parte do salário de seus funcionários. Em depoimento, a jornalista Gladis Éboli afirma que entregava 1 500 reais mensais em dinheiro vivo. “Quase todos do gabinete devolviam uma parcela do salário. São pessoas que trabalham honestamente, por isso resolvi denunciar.” Segundo Gladis, o esquema rendia 80 000 reais por mês à então deputada. Procurada, Clélia não quis se pronunciar.
Outra irregularidade ocorrida com a anuência de deputados versa sobre a chamada licença-prêmio. De cinco em cinco anos, os servidores assíduos (não há registro eletrônico de ponto) têm o direito a receber três salários de uma vez só. O cálculo é baseado no último vencimento. Recentemente, um servidor que pediu para não ser identificado afirma ter “turbinado” o salário para alavancar os ganhos. Os 10 000 reais a que faria jus viraram 30 000 reais de uma hora para outra. “Guardei uma parte, e a outra usei para pagar dívidas”, diz. Procurado por vários dias, o presidente da Assembleia Legislativa, Cauê Macris (PSDB), negou-se a conceder entrevista para explicar as irregularidades. Em nota assinada pelo secretário-geral Joel Pinto Oliveira, a Alesp afirma que cabe a cada departamento a responsabilidade de fiscalizar o cumprimento da jornada de seus funcionários e controlar o ponto.
Muitos dos deputados que assumiram em 15 de março — a renovação desta legislatura foi de 55% — apresentam discursos de austeridade. Mas o contribuinte paulistano não deve esperar mudanças no cenário legislativo estadual em um futuro próximo. Seja pela dificuldade em desmanchar práticas arraigadas há décadas, seja por limitações próprias, a turma estreante ainda não mostrou atributos capazes de conduzir a Alesp a uma nova era. Há iniciativas promissoras, como a do Novo, cuja bancada, formada por quatro deputados, seguiu a orientação do partido e abriu mão do carro com motorista a que cada um deles tem direito. “Vamos pagar os deslocamentos com nosso dinheiro”, afirma Heni Ozi Cukier. A medida, no entanto, é criticada por veteranos como demagogia. “Quem trabalha de verdade precisa de carro. Essa turma da internet que anda de patinete trabalha para os internautas, não para o povo”, rebate o deputado Carlos Giannazi (PSOL).
Essa relação entre a leva recente e os veteranos tem provocado rusgas e até ameaças mais sérias. Em abril, o calouro Arthur do Val (DEM), conhecido na internet como Mamãe Falei, subiu à tribuna para criticar dois projetos de lei do Executivo que aumentam os ganhos dos fiscais de renda do estado. Ao expor colegas que receberam doações de campanha da categoria, causou mal-estar. “Vamos começar a dar show”, disse, antes de nomear alguns deles, como Enio Tatto e Cauê Macris. Depois disso, o texto foi retirado de votação, mas o parlamentar deverá passar pelo Conselho de Ética da Casa.
RANKING DA GASTANÇA EM 2018*
Itamar Borges (MDB) — R$ 385 500
Fernando Cury (PPS) — R$ 384 280
Márcia Lia (PT) — R$ 378 258
Beth Sahão (PT) — R$ 369 952
Roberto Massafera (PSDB) — R$ 369 334
*Valores referentes a reembolsos
Mesmo entre os recém-chegados, as discussões extrapolaram o plenário. Duas semanas após tomar posse, Douglas Garcia (PSL) atacou Erica Malunguinho (PSOL) ao dizer que, caso encontrasse um transexual em um banheiro, ele o tiraria de lá no tapa. Outro entrevero, entre Janaina Paschoal (PSL) e Professora Bebel (PT), quase terminou com a invasão do gabinete da advogada filiada ao partido do presidente Jair Bolsonaro. “Vou mandar instalar uma câmera de segurança na porta da minha sala”, afirma Janaina. “É um absurdo a Assembleia não possuir controle de acesso.”
Ainda que seja possível extinguir maracutaias, gastos exorbitantes e bate-bocas inócuos, a Alesp sofre de outro mal intrínseco a sua existência: a irrelevância. No Estado de Nova York (EUA), por exemplo, o Legislativo estadual tem bem mais atribuições. Recentemente aprovou uma lei que autoriza a administração tributária estadual a entregar declarações de impostos do presidente Donald Trump e de funcionários públicos a comissões parlamentares. Temas como a liberação da maconha e do aborto também foram discutidos. Composto de duas Casas — uma Assembleia (com 150 parlamentares) e um Senado (com 63), o Parlamento de Nova York custa 228,8 milhões de dólares (cerca de 915,2 milhões de reais) por ano. Ou seja, é maior, mais relevante e gasta 30% menos que o nosso (já o PIB paulista é inferior à metade do de Nova York). Quando não está votando homenagens e calendário turístico, a Alesp decide sobre temas de interesse do Executivo. Estão previstos para ir a votação neste ano projetos como a extinção da estatal Dersa e a concessão do Jardim Zoológico, questões caras ao governador João Doria. “A Assembleia não cria atritos com o governo. Essa situação gera um vazio de forças políticas no estado”, diz o professor Glauco Peres, do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP).
PRINCIPAIS GASTOS DA ALESP*
Aluguel de imóveis — 4,1 milhões de reais
Gráfica — 3,6 milhões de reais
Consultoria — 2,2 milhões de reais
Combustível — 1,9 milhão de reais
Material de escritório — 1,3 milhão de reais
*Em 2018
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 05 de junho de 2019, edição nº 2637.