Projeto quer enterrar 52 quilômetros de fios, 0,08% do total
Ainda falta muito para eliminar os postes da paisagem da cidade
Gigantescos novelos de fios elétricos embolados a alguns metros de altura. Emaranhados de pipas, tênis e objetos de toda sorte pendurados como em um varal. Postes podres espalhados no meio das calçadas. Imagens como essas incomodam os paulistanos há décadas e são um traço inconfundível da paisagem urbana da metrópole.
Mas um recente projeto anunciado pela prefeitura traz alguma esperança de que a questão possa um dia ser erradicada do nosso horizonte. A partir das próximas semanas, 52 quilômetros de fios aéreos começarão a ser enterrados em 117 ruas de bairros da região central.
Algumas vias incluídas no plano são a Pamplona, na Bela Vista, a José Paulino, no Bom Retiro, e a Aurora, na República. O perímetro foi escolhido por delimitar uma das principais zonas comerciais da cidade — nesses locais, o fluxo de transmissão de dados é maior. A reforma vai durar até julho do ano que vem.
Na sequência, outras áreas da capital conhecidas pela vocação empresarial, como o Itaim, deverão ter sua fiação aterrada. A meta é fazer desaparecer 400 quilômetros de fios aéreos até o fim da gestão João Doria, em 2020.
A Eletropaulo não ficará responsável pela maior parte dessa etapa inicial da operação, pois já possui cabos subterrâneos na região eleita. Por ali, como é a dona dos postes, ela apenas aluga o espaço a outras empresas. Nesse caso, o trabalho da distribuidora de energia elétrica será retirar os cilindros de concreto das ruas e reformar as calçadas.
Isso demandará um gasto de 6 milhões de reais. A conta mais alta, de cerca de 200 milhões de reais, será paga por cerca de vinte companhias do setor de telecomunicações (telefone, TV e internet), que terão a missão de enterrar os seus fios. A prefeitura não desembolsará um centavo.
“Tivemos várias reuniões ao longo dos últimos seis meses até firmarmos um acordo”, diz o secretário de Serviços e Obras, Marcos Penido. “Como os cabos subterrâneos costumam ter maior capacidade para transmissão de dados, as empresas poderão recuperar uma parcela do investimento com a criação de pacotes mais potentes e, portanto, mais caros”, completa.
Por enquanto, não há previsão de aumento nas tarifas de energia elétrica por causa da reforma. No ano passado, a Eletropaulo chegou a anunciar que seria obrigada a dobrar o preço das tarifas de luz para realizar obras desse tipo.
Trata-se, nos últimos doze anos, do primeiro grande projeto articulado pelo executivo municipal para avançar na questão. Apesar do mérito inegável, a ação prevista é ainda tímida na tentativa de resolver um problema histórico de São Paulo. A cidade possui 69 400 quilômetros de fiação, seja de energia elétrica, seja de comunicação. Desse total, estão enterrados 11 400 quilômetros, cerca de 16%, a maioria de telefone. O restante permanece pendurado em 1,2 milhão de postes.
Ainda que a atual gestão cumpra a sua promessa de acrescentar 100 quilômetros por ano a essa conta, o índice subterrâneo só alcançará os 17% perto do fim da década. Se o mesmo ritmo de enterramento for mantido após 2020, levaremos quase seis séculos para sumir com toda a nossa rede aérea.
A dificuldade em executar a missão está diretamente ligada ao alto custo envolvido. Cada quilômetro de cabos enviado para baixo do solo exige investimento de até 10 milhões de reais, dez vezes mais que o exigido para o modelo suspenso. Ou seja, para resolver o problema da cidade inteira seria preciso gastar 580 bilhões de reais, o equivalente ao orçamento total consumido pela prefeitura em um período de dez anos.
Segundo especialistas, no entanto, bastaria resolver 40% da questão dos fios suspensos para mudar drasticamente o panorama na cidade, o que baixa esse custo para algo em torno de 230 bilhões de reais.
Apesar do alto investimento, há vantagens óbvias na adoção do sistema subterrâneo, em especial no que se refere à segurança da população e à incidência de blecautes. Estima-se que cerca de 2 000 árvores caiam por ano na capital, principalmente durante temporais, grande parte delas sobre a trama de fios pendurada nos postes.
Um levantamento de 2015 feito pelo Corpo de Bombeiros mostra que há, em média, uma queda de fio energizado por dia na metrópole. Em 2016, três paulistanos morreram eletrocutados por aqui em acidentes na rede pública. Além do perigo de provocarem choque nas pessoas, essas avarias são as responsáveis pela maioria dos problemas das interrupções no fornecimento de energia, segundo as distribuidoras.
Em janeiro de 2015, por exemplo, moradores do Butantã, na Zona Oeste, ficaram três dias sem luz após um apagão ocasionado por uma singela chuva de verão. Isso acarreta não só transtornos aos cidadãos mas também custo extra às concessionárias. Somente no ano passado, a Eletropaulo deixou de arrecadar 79 milhões de reais por descontos oferecidos como compensação na conta de consumidores que ficaram no escuro.
Existem outras perdas financeiras decorrentes do fato de o sistema ser exposto. Cerca de 4% da produção de energia na Grande São Paulo é desperdiçada por ano pela proliferação de “gatos”, as populares gambiarras utilizadas para ligar uma residência à rede elétrica de forma irregular, sem o pagamento de conta. Em 2015, o prejuízo desses furtos foi estimado em 390 milhões de reais, de acordo com levantamento feito pelo Instituto Acende Brasil, um observatório do setor no país.
Some-se a isso o problema crônico dos roubos de fios. No primeiro semestre do ano passado, 738 quilômetros foram surrupiados na capital. “A região central registra pelo menos um delito desse tipo por dia”, afirma o delegado Jan Plzak, do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic).
Por fim, o trabalho de manutenção é menos frequente sob o chão. “Os cabos subterrâneos são produzidos com material mais resistente para suportar a umidade e a acidez do solo”, diz Miracyr Marcato, conselheiro do Instituto de Engenharia. “Isso faz com que o isolamento seja melhor, o que reduz os possíveis danos à rede.”
Um amplo programa de enterramento de fios também provocaria uma revolução estética na capital. Desde a criação da Lei Cidade Limpa, que extinguiu outdoors e placas das ruas em 2007, a teia elétrica que paira sobre nossa cabeça tornou-se a principal vilã da poluição visual. Sua extinção levaria, inclusive, ao surgimento de outros tipos de mobiliário, como postes menores e mais elegantes para abrigar as lâmpadas de iluminação pública.
“Essa mudança traria consequências profundas na valorização da cidade e no bem-estar do paulistano”, diz o professor Valter Caldana, do curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Uma construtora poderia, por exemplo, passar a cobrar mais caro por seus empreendimentos, porque o entorno seria mais bonito”, completa.
Ainda que não se considerem os possíveis lucros de setores específicos da economia, desaparecer com os fios é uma questão básica de urbanidade em uma metrópole que pretende ser moderna. O modelo subterrâneo é padrão não só em centros cosmopolitas internacionais como Londres (Inglaterra), Nova York (Estados Unidos), Barcelona (Espanha) e Paris (França) como está se disseminando até entre nossos vizinhos sul-americanos, assolados por problemas econômicos similares aos do Brasil.
Em Buenos Aires, na Argentina, não há praticamente mais nenhum fio aéreo na região central. A medida foi incluída em uma grande reforma na área promovida pela prefeitura local na década de 50.
Esta não é a primeira investida do poder executivo municipal para tentar resolver o imbróglio. Em 2005, a gestão José Serra aprovou uma lei que obrigava as concessionárias de energia elétrica e telecomunicações a enterrar no mínimo 250 quilômetros de fios por ano (mais que o dobro da meta do atual projeto).
Na época, as empresas obtiveram liminar para driblar a exigência. Assim, as principais intervenções desse tipo realizadas até hoje na cidade ficaram limitadas a grandes avenidas, que passaram por gigantescas readequações urbanas bancadas pela prefeitura. A Paulista foi contemplada em 1970 e a Avenida Rebouças, em 2005.
Ocorreram ainda ações menores financiadas pela iniciativa privada, a exemplo do que foi feito nas ruas Avanhandava, na Bela Vista, Oscar Freire, nos Jardins, e Amauri, no Itaim. No caso da Avanhandava, 1,5 milhão de reais foram gastos pela operadora de cartões Visa, em 2006, para alargar calçadas e instalar cabos subterrâneos.
A obra, realizada em um trecho de 120 metros, durou pouco mais de um ano. “Não precisamos mais podar os galhos em torno da fiação, o que deixava a copa das árvores com cortes horríveis”, diz o empresário Walter Mancini, proprietário de cinco restaurantes naquele pedaço. “Também houve a valorização dos imóveis do entorno.”
No mesmo ano, cerca de 750 metros da badalada Oscar Freire tiveram seus fios enterrados, a um custo de 8,5 milhões de reais, bancado pela associação local de lojistas, pela prefeitura e pela Amex. “Fomos obrigados a conviver com os transtornos da reforma por mais de um ano, mas não é possível implementar melhorias sem sacrifícios, e o resultado valeu a pena”, afirma a presidente da Sociedade dos Amigos, Moradores e Empreendedores do Bairro de Cerqueira César, Célia Marcondes.
Para executar um projeto como esse, moradores e empresários têm de pedir autorização ao poder público. Com o aval, devem
levantar o dinheiro e contatar a Eletropaulo para realizar o serviço. No momento, não está em andamento na capital nenhuma ação desse tipo. Resta aguardar, portanto, que a prefeitura cumpra o prometido até 2020 e que a iniciativa ganhe velocidade, para que os paulistanos possam, enfim, vislumbrar um horizonte menos enrolado.
Conta enroscada
Os desafios para a capital ter uma rede subterrânea
69 400 quilômetros de fiação, entre aérea e subterrânea, existem hoje por aqui
16% é o índice de cabos enterrados, a maioria deles de linhas telefônicas
10 milhões de reais é o custo aproximado para levar 1 quilômetro de fio para o subsolo
580 anos é o tempo que levaria para sumir com o emaranhado na cidade, a ser mantido o ritmo atual