‘Estadão’: raça do cavalo símbolo do jornal gera polêmica
Reformulado pelo novo projeto gráfico, símbolo do "Estadão" provoca debate
O nome do cavaleiro era Bernard Gregoire. Nascido na França, em 1876 ele começou a vender jornais de porta em porta pelas ruas de São Paulo, algo então inédito no país. O periódico que carregava sob o braço chamava-se “A Província de São Paulo”, que começara a ser publicado um ano antes e sobreviveria até hoje, com o nome de “O Estado de S. Paulo”. Com uma corneta de chifre de boi, Gregoire anunciava as manchetes do dia. O barulho atraía a atenção dos cães da vizinhança — sob latidos, ele costumava ser seguido durante o trabalho. Essa cena foi ilustrada pelo pintor paulistano José Wasth Rodrigues (1891-1957) e virou um selo que marcaria os livros da biblioteca da família Mesquita, cujos membros integram a direção do jornal desde 1891. Em 1971, o Ex-Libris, termo em latim que significa “proveniente da biblioteca de”, passou a estampar a nobre página 3, a dos editoriais, e consolidou-se como a marca do “Estadão”. Sobre tudo isso não há controvérsia: são informações que constam nos anais da imprensa brasileira. Uma polêmica em relação à raça do animal que monsieur Gregoire montava, no entanto, veio a galope no mês passado, quando o Estadão, cuja circulação média diária é de 225000 exemplares em dias úteis e de 277000 aos domingos, reformulou seu projeto gráfico e editorial, o que incluiu o redesenho do tal selo para usá-lo no jornal (inclusive na primeira página) e na internet.
Quem levantou a lebre foi o jornalista Carlos Soulié Franco do Amaral. Profissional com passagem pelo próprio Grupo Estado e ex-criador de cavalos, ele não se conformou com o novo formato. “O redesenho representa um erro histórico”, diz. Segundo ele, a figura original, ainda mantida na página 3, era de um manga-larga, raça formada no Brasil a partir de espécies importadas da Europa e usada para executar serviços como a distribuição de jornais. O cavalo de agora, porém, de pescoço envergado e garupa elevada, seria um tipo exótico, lusitano, que passou a ser criado no país apenas nas últimas décadas. “Há um descompasso entre forma e conteúdo. Esse cavalo de picadeiro deixou de ser um registro fiel”, afirma. O editor executivo do “Estadão” José Carlos Cafundó, com a autoridade de quem editou por 22 anos o suplemento Agrícola e é dono de dois mangas-largas, pensa diferente. Para ele, a carga genética europeia é tão forte nos cavalos brasileiros que, “tivesse a forma que tivesse, o animal sempre possuiu forte sangue lusitano”. Segundo Cafundó, a imagem original é destituída de legitimidade histórica, sendo fruto da imaginação de seu autor. Wasth Rodrigues, no entanto, era historiador. Nascido em São Paulo treze anos depois de monsieur Gregoire ter regressado à França, foi também criador do brasão da cidade de São Paulo. Em seu obituário, escrito pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, é definido como um homem que “podia muito bem reivindicar para si o título de um dos maiores historiadores brasileiros, não pela palavra escrita, mas pela imagem”. No essencial, apesar da polêmica, fica tudo como dantes. O lusitano, mais moderninho, instalou-se na capa, logo abaixo do logotipo, e pelo jeito de lá não vai sair. E o bravo manga-larga, com o inseparável cachorro de rabo erguido, permanece onde sempre esteve, como se zelasse pelos impecáveis editoriais redigidos sob a responsabilidade do diretor de Opinião do jornal, Ruy Mesquita — único acionista da família que atualmente tem funções executivas no “Estadão” —, e por 135 anos de tradições que são parte da história de São Paulo.