O dia que não terminou: PM que teve arma apontada para a cabeça por colega está em hospital psiquiátrico
Quase um ano depois do ocorrido, o cabo da Polícia Militar Márcio Simão não superou o episódio; o outro soldado está em regime semiaberto
Os reflexos daqueles longos sessenta segundos em que o cabo da Polícia Militar Márcio Simão de Oliveira Matias, 36, ficou sob a mira de uma pistola empunhada por um colega de farda, o soldado Felipe do Nascimento, em 4 de dezembro do ano passado, na Rua Santa Efigênia, no centro, duram até hoje. Depressão, ansiedade, stress pós-traumático e transtorno do pânico são alguns dos diagnósticos que o militar recebeu nos meses que sucederam ao evento.
Naquela data, após Felipe, 35, se atrasar cinco minutos para voltar do almoço e ter levado uma bronca de Márcio, seu superior imediato, o soldado, em vez de bater continência, sacou a pistola e, no meio da rua, cercado por dezenas de pedestres, ameaçou, com o dedo no gatilho, matar o parceiro de patrulha. A cena, filmada por celulares, viralizou rapidamente. “Só os dois” e “atira na bunda dele” foram dois dos gritos proferidos pelos populares, que riam da situação.
Figurinhas de WhatsApp (uma delas com a palavra “sextou”, seguida de um palavrão) também pipocaram pelo aplicativo. Os dois homens de cinza e coletes fluorescentes da conservadora e hierarquizada corporação tinham virado piada de internet. De inusitada e absurda, a ação violenta se transformou em tormento para o cabo, que tem dez anos de PM e possui em seu currículo diversas menções positivas de sua conduta nas ruas.
No último dia 6 de novembro, ele finalmente conseguiu ser internado em uma instituição psiquiátrica de Itapira, no interior, após diversas consultas em hospitais militares e civis e sucessivos pedidos de afastamento devido aos quadros avançados de distúrbios psiquiátricos. Mesmo assim a situação está longe de ser considerada ideal.
“São 164 quilômetros de distância de sua residência, e mais, ele foi internado por prazo indeterminado e sem direito a acompanhamento”, afirma seu advogado Robson Bertoldo Carlos, no processo que move contra o Estado para que seu cliente seja afastado definitivamente, por seis meses, não de forma “picada”, como vem ocorrendo. “Não basta penalizar covardemente o autor/vítima, agora a instituição vai também estender a pena aos demais familiares, esposa e filho de 4 anos.”
Enquanto conseguia afastamentos pontuais — foram oito em seis meses —, Márcio foi quatro vezes transferido de batalhão e não conseguiu fazer um tratamento duradouro. Diante de tanta instabilidade, o cabo passou a ter ideações suicidas, principalmente quando veio a última “bomba”. Em 27 de maio, a determinação de uma junta médica foi clara: o cabo estava apto a fazer trabalhos burocráticos internos e a Polícia Militar não iria mais aceitar atestados médicos dele. A saída encontrada foi “queimar” férias e folgas acumuladas para ele poder permanecer afastado.
“Com medo de ser preso em flagrante pelo crime de deserção e/ou sofrer qualquer represália, buscou-se os meios alternativos para ele poder se afastar”, afirmou o advogado Bertoldo Carlos, no processo. A PM refuta as acusações da defesa. Em nota, diz que Márcio recebeu todo o apoio e suporte de seus comandantes. E que após a indicação de que seguiria afastado das ruas, mas trabalharia em atividades administrativas, foi transferido para apenas 3 quilômetros de onde atuava anteriormente.
Preso em flagrante, o soldado Felipe foi condenado a seis anos de prisão por tentativa de homicídio, mas teve a pena reduzida para quatro anos, em setembro, e atualmente está no regime semiaberto do Presídio Romão Gomes. “Eu lamento a situação do Márcio, mas ambos são vítimas de um sistema. O Felipe estava doente, com depressão, mas mesmo assim seu comandante o colocou armado na rua. O Felipe já vinha sendo vítima da PM, mas ela não o socorreu. A Polícia Militar é muito omissa”, diz André de Lima, advogado do soldado.
Em janeiro, Felipe teve o salário suspenso, em decorrência da prisão, mas a Justiça determinou, em agosto, que o valor deve ser pago de forma retroativa e com juros, independentemente da detenção. Por mês, ele recebe o valor de 3069 reais.
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Publicado em VEJA São Paulo de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764