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Pé-de-meia

A vida cobra cada dia vivido, em sal, rugas e cabelo, como disse Carlos Drummond de Andrade.

Por Ivan Angelo
Atualizado em 21 jun 2022, 17h37 - Publicado em 18 set 2009, 20h17

Outro dia, ao trocarem o quadro de luz da casa, já antiga, meus sogros encontraram algumas notas de 10 000 cruzados novos. O que valeriam na época em que foram colocadas ali? Perdeu-se a noção. Tinham vivido o tempo em que aquele dinheiro comprava coisas, e não são mais capazes de dizer o que compraria. Quando foi lançado o cruzado novo, há apenas vinte anos, 1 valia 1; três anos depois, 1 valia mil vezes menos – tal era a velocidade com que íamos para o buraco, naqueles tempos.

 

A vida cobra cada dia vivido, em sal, rugas e cabelo, como disse Carlos Drummond de Andrade, mas também em cruzeiros, cruzados, dólares e reais. Até as pessoas perdem va-lor com o tempo, como comprovam o mercado de trabalho, que exclui os já maduros, os projetos dos governos, os planos de saú-de, a pouca importância nas decisões das famílias – com apenas mínimas compensações, como a fila dos idosos. Não há escapatória para essa inflação.

 

Que era aquele dinheiro na caixa de luz? Era um guardado? Um pé-de-meia? Uma simpatia? Vinte anos apagam muita coisa, o que se quer e o que não se quer.

 

Guardar dinheiro em casa – já não se usa? Você gasta 40 reais por mês para ter uma conta bancária e ainda querem te empurrar uma porção de “produtos”, como seguros, créditos, capitalização, cartões. Há quem diga que com a inflação baixa e os altos custos dos bancos já não se perde dinheiro guardando em casa o que se gasta no mês. A não ser para os ladrões.

 

Guardava-se dinheiro em latas de goiabada, debaixo do colchão, dentro de sapatos, das meias, nos bolsos das roupas nos armários. Foi a inflação que desmoralizou o colchão. Conta-se que o apresentador Flávio Cavalcanti guardava dólares nos bolsos dos ternos pendurados no guarda-roupa. Morreu de repente, mas seu pessoal encontrou o dinheiro.

 

Não foi o caso desta outra família. A mulher, consumista compulsiva, não podia saber de um saldinho na conta bancária do marido que ia logo para o shopping. Passaram tempos brigando em torno do tema gastar e poupar. O marido começou a esconder dinheiro em casa, sem falar com ela. Durante uns cinco anos, guardou gordas quantias nos bolsos de roupas que não usava. Um dia voltou do trabalho e a mulher tinha doado todas as roupas velhas do armário, numa dessas campanhas do agasalho. Ensacou e entregou sem ver, num impulso. Ele calcula que havia lá uns 100?000 reais. Procuraram, choraram, brigaram, se separaram, se reconciliaram e se conformaram. Hoje se consolam pensando que o dinheiro pode ter sido bem empregado – paletós lotéricos pingando aqui e ali entre necessitados. O lado bom: ela se curou do consumismo.

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Outra história de dinheiro guardado foi-me contada por uma amiga.

 

O marido de sua irmã morreu sem deixar grande coisa além da conta bancária magra, uma aplicação da qual ela ia sacando seu sustento, e da boa casa onde morava. Advogado, profissão liberal, não tinha aposentadoria.

 

A aplicação se exauriu. A filha casada ajudava, sem poder muito. Ela considerou vender a biblioteca do marido. Não era uma leitora, mal tocava nos livros. Os de leis talvez estivessem superados, mas os teóricos, as enciclopédias e os clássicos, encadernados e bem conservados, valeriam alguma coisa. Pegou um desses ao acaso, entristecida por antecipação de separar-se de mais essa lembrança dele, sentou-se para folheá-lo e levou um susto: entre cada folha havia duas notas de 100 dólares. Foi à cata em todos os livros, reuniu quase 2?000 notas! Trocou-as por uma casa em Campos do Jordão, alugou a casa de São Paulo e hoje mora na serra.

 

Lembra-se do marido com um sentimento dividido entre reconhecimento e mágoa. Por que a desconfiança, o segredo, o silêncio sobre o dinheiro, em 51 anos de casados? E se tivesse vendido os livros sem abri-los?

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Ah, os homens, os homens, criaturas impenetráveis – pensa ela, olhando ao longe as araucárias entre as brumas.

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