Papo Vejinha com Edu Lyra: “O pobre manda filho para a escola também para comer”
Fundador da rede Gerando Falcões, que atua em mais de 200 comunidades, ele fala sobre exclusão digital, ausência da merenda e de máscaras nas favelas
- O isolamento social é algo possível nas favelas? Como afetou a rotina?
Mudou toda a rotina. Primeiro, as pessoas não estão mais tendo acesso à renda. Quase metade dos moradores de favela é de autônomos e, basicamente, vende o almoço para comprar o jantar. Segundo, o pobre manda filho para a escola também para comer. Então, ter toda a família em casa acaba gerando um sobrepeso no bolso. Além disso, as casas são muito pequenas. Há um problema de falta de salubridade e até mesmo emocional. O isolamento social nessa realidade é muito difícil. Porém, todo brasileiro, inclusive moradores de favela, está fazendo sacrifícios dentro de suas possibilidades. Ninguém quer morrer de coronavírus. O rico vai para a casa de praia, para a casa de campo… O pobre tem um quarto que divide com a família inteira.
- Como tem sido a divulgação dos cuidados principais? De que maneira funciona a comunicação?
Depende do grupo. No geral, pela TV, pelo Whats App (para quem tem) e pelo boca a boca. Algumas favelas se reorganizaram, colocando faixas e carros de som com avisos. As lideranças das comunidades também estão assumindo esse papel de comunicar.
- Cuidados como máscaras e álcool em gel ainda estão distantes?
As pessoas estão expostas à escassez de recursos, inclusive para ter acesso a materiais de higiene pessoal. E o uso de máscara ainda precisa ser intensificado nas favelas. Começou um movimento para tornar isso uma realidade, mas não é. A falta de saneamento básico é uma realidade muito triste, que torna tudo ainda mais difícil. O brasileiro tem isso garantido na Constituição, mas não na vida real. Mais da metade da população brasileira não tem acesso a esse recurso. Na favela, isso é quase a totalidade. Tem estudos que dizem que a cada 1 real investido em saneamento básico poupam-se 4 reais em saúde. A favela não quer caixa-d’água, o que a favela quer é saneamento básico.
- Você tem conhecimento de pessoas que testaram positivo e sararam?
Tenho conhecimento de gente que testou positivo e morreu. Perdemos duas pessoas próximas a nós, parentes de funcionários.
- Qual a melhor forma de conter a doença na periferia?
Na vida a gente tem de ser pragmático. Vamos conseguir dar uma casa a cada morador? Não vamos. Mas será que a gente consegue criar um colchão social para o impacto ser menor? Sim. Como? Primeiro, com a ajuda do governo, que acabou de fazer um gesto. Depois, com a participação da sociedade, que precisa tomar grandes atitudes, como o Itaú (banco que realizou uma doação de 1 bilhão de reais, o maior desembolso privado de uma empresa no Brasil para financiar ações de combate ao coronavírus). Essa mobilização precisa vir não só de companhias como também da pessoa física. É quando a balança oscila e o medo espreme que as lideranças têm de ficar de pé e liderar. O brasileiro que tem algum recurso não pode ser covarde. Quem for covarde hoje lá na frente vai ter de pedir desculpa aos mais pobres.
- Qual a sua opinião sobre o auxílio emergencial de 600 reais disponibilizado pelo governo federal?
Eu vejo com bons olhos, um acerto. Não é possível atender todo mundo que precisa com uma quantia elevada, senão o Estado quebra. Os 600 reais vão fazer muita diferença na vida das pessoas. O meu único ponto de atenção está na velocidade com que a população mais vulnerável terá acesso ao recurso. Muita gente não sabe ler nem escrever. Como elas vão baixar o aplicativo? Nesse meio-tempo, entre a pessoa demorar para entender como funciona e não conseguir ter acesso ao sistema, já se vão uns dez, quinze dias… É tempo suficiente para alguém morrer de fome.
- Qual o maior impacto que a crise deve deixar nas favelas?
O primeiro impacto é na saúde. Perdemos pessoas, e os números mostram que perderemos mais. O segundo é econômico: gente sendo mandada embora, empreendedores que não vão conseguir reerguer seus negócios… O terceiro é no desenvolvimento educacional. Escolas privadas estão disponibilizando educação remota, mas nas favelas as crianças estão sem estudar. Ainda há uma exclusão digital muito grande no Brasil.
- Como estão as atividades da Gerando Falcões?
Estamos com uma campanha de enfrentamento da fome chamada Corona no Paredão. Levantamos 10 milhões de reais com 10 000 doadores de dez países. Criamos a cesta básica digital, pela qual as famílias que fazem parte da rede Gerando Falcões são contempladas com cartões Alelo e Ticket seguindo uma ordem de vulnerabilidade. A cada mês, o cartão é recarregado com o valor de 100 reais. E, com o cartão em mãos, elas conseguem comprar no comércio da região, movimentando a economia. Atenderemos mais de 170 000 pessoas nos próximos três meses. Também criamos a campanha digital #Cestou, com o intuito de incentivar as doações que podem ser realizadas pelo site gerandofalcoes.com/coronanoparedao. O dinheiro arrecadado será auditado pela KPMG e estamos reportando tudo em tempo real nas nossas redes sociais.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 22 de abril de 2020, edição nº 2683.