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“Achei que a síndrome de burnout fosse me matar”, diz David Uip

Um dos primeiros porta-vozes da aids e da Covid-19 no Brasil, infectologista fala da angústia já superada e do cancelamento de seu aniversário de 70 anos

Por Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
22 abr 2022, 06h00

Estava tudo pronto para a tão esperada festa da chegada aos 70 anos, ocorrida no sábado (16). Não fosse pela Covid-19, o infectologista David Uip teria recebido amigos e familiares em sua casa. Infectado pela segunda vez desde março de 2020, o “médico das estrelas”, como ele não gosta de ser chamado, passou três dias internado no Hospital Sírio-Libanês, onde costuma dar expediente, com dor de garganta e uma coriza que cismava em amolá-lo. Ainda com a voz rouca, ele falou a Vejinha na segunda (18), já em casa, e lembrou dos mais de quarenta anos de carreira, dos desafios de dar as notícias da Covid em meio a tanta incerteza, das mais de cinquenta mortes de pacientes e até de uma outra doença, que ele diz que quase lhe tirou a vida, a síndrome de burnout.

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Quais as diferenças das duas infecções de Covid-19, em março de 2020 e agora?

Na primeira vez, eu não fiquei internado, tratei em casa e depois de uma semana os exames detectaram uma pneumonia. Desta vez tive uma dor de garganta insuportável, uma coriza que me amolou bastante. Nos dois casos eu tive uma uretrite, inflamação na uretra, que causa um incômodo muito grande. Mas agora estou bem melhor.

A infecção foi no trabalho?

Não, foi em um casamento de pessoas próximas. Minha mulher ficou dois anos isolada no Guarujá e não fomos a nenhum evento nesse período. O primeiro a que fomos nos contaminamos. Outras dezenas de pessoas se contaminaram. Eu não saio em hipótese alguma sem máscara, mas nessa festa ninguém usava máscara. Sei de dois casamentos na mesma semana de pessoas sem máscara e ninguém foi infectado. Esse vírus é danado.

Então, qual conselho o senhor dá? Usar máscara em locais fechados e é melhor não ir a casamentos?

Mas, mesmo com máscara, quando a pessoa vai comer e beber, ela tira a máscara. Quanto a ir ou não a festas e casamentos, não dou mais palpite.

E a sua festa de 70 anos, seria comemorada como?

Iria ter duas festas, uma para família e amigos, e outra daqui a um mês, para outro grupo de amigos. Fiquei triste, mas vou fazer depois, em dobro.

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Por que o senhor se afastou do comando do comitê estadual de combate ao coronavírus? Houve alguma rusga com o então governador João Doria?

Não, nenhuma. Esse comitê precisa ser estudado. Aqui em São Paulo, ninguém foi enterrado em vala comum.

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Mas por que o senhor deixou de aparecer nas entrevistas coletivas?

Eu nunca me afastei de nenhuma reunião, apenas saí da linha de comunicação. Fiquei muito exposto o tempo todo. Fiquei doente, com Covid. Fiz uma grande besteira: no 15º dia da quarentena, eu voltei para o consultório, para a linha de frente do governo e para a faculdade (é reitor do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC). Dois meses depois, eu tive uma grande arritmia cardíaca e o diagnóstico foi (síndrome de) burnout. Quem me cuidou falou que cheguei ao limite, físico e profissional. Estava trabalhando vinte horas por dia.

Quais sintomas o senhor teve?

A pior época foi em maio de 2020. Era uma sensação iminente de morte. Cheguei ao meu consultório e falei que estava morrendo. Me examinaram, fiz todos os exames imagináveis. A sensação é horrível. Mas foi um grande aprendizado, pois o que eu fiz de diagnóstico de burnout em pacientes com Covid foi de uma frequência maluca.

Viu muita gente morrer na pandemia?

Dos 2 200 pacientes que tratei no consultório, 850 foram internados e 54 morreram. Vi todos eles morrerem.

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Como o senhor lida com a morte de um paciente?

Isso não é de agora. Perdi milhares de pacientes para a aids. Vi dois irmãos morrerem com uma semana de diferença. Nunca me acostumei com isso. Cada morte é uma chibatada. Se você me perguntar se eu sei lidar com a morte, sei consolar. Mas eu sofro. Cada um que morre é um pedaço que vai junto. Me emociono em todos os casos.

O senhor foi um dos responsáveis pelos primeiros diagnósticos de HIV no Brasil. Como era tratar pacientes sem medicamentos adequados?

Não tínhamos equipamentos, medicamentos, nada. Tratávamos apenas os sintomas. Mas acredita que tenho pacientes que tratei desde 1982 e estão vivos?

Seu nome foi cotado várias vezes para disputar eleições. Por que nunca aceitou se candidatar?

Já fui chamado para ser candidato a prefeito de Santos, de São Paulo, governador, deputado, vereador, tudo. Não é a minha genética. Respeito a política e políticos, mas tem de ter perfil, que não é o meu. Eu sou técnico.

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Qual sua relação com São Paulo?

Amo São Paulo. Conheço o estado bem, de quando fui secretário. Nasci no Ipiranga e ia jogar futebol de várzea contra o Parque da Mooca. Nunca ganhei uma deles. Jogávamos Desafio ao Galo. Quem ganhava ficava no domingo seguinte. Joguei na várzea mais de vinte anos. Esse é o David que as pessoas não conhecem.

O David que as pessoas conhecem é o “médico das estrelas”, que atende presidentes e políticos famosos?

Trabalhei quarenta anos no SUS. Criei a Casa da Aids. Sempre tratei paciente pobre de forma digna e profissional. Fui diretor do Incor, do Instituto Emílio Ribas e do Hospital das Clínicas. Trato pessoas importantes, mas tratei a vida toda de pobres. E adoro o que eu faço.

Aos 70 anos, o senhor pensa em aposentadoria?

Eu não vou parar. Quem vai me parar é a vida. A minha esposa, que está aqui do meu lado, já perdeu mais uma vez a esperança de sairmos nas minhas próximas férias.

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Publicado em VEJA São Paulo de 27 de abril de 2022, edição nº 2786

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