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“O Brasil precisa enfrentar o racismo de forma objetiva”, diz Laurentino

Autor de duas trilogias de sucesso sobre império e escravidão afirma que a iniciativa deve partir da população branca

Por Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
5 abr 2024, 06h00
Imagem mostra Laurentino Gomes, em cenário escuro
Laurentino: "A ferida da escravidão não está no Brasil" (Vilma Slomp/Divulgação)
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Atualmente vivendo em Portugal, onde faz estudos para um possível próximo livro sobre a relação da Igreja Católica com a escravidão no Brasil, o escritor e jornalista Laurentino Gomes acompanha de longe uma pequena e perene transformação que ainda não foi capaz de igualar as mulheres negras aos demais grupos da nossa sociedade.

Enquanto a taxa geral de desocupação no país era de 6,3% no fim do ano passado, a de trabalhadoras negras era quase o dobro (11,7%), segundo o Dieese. “Quando ando pelas grandes cidades brasileiras e vejo garotos e garotas negros empurrando carroças, em trabalhos parecidos com os da época da escravidão, me pergunto quantos ministros, compositores, escritores, professores estão ali porque o país nunca lhes deu oportunidades”, afirma o autor de Escravidão, uma série de três livros sobre os mais de 300 anos de escravismo.

Confira a entrevista a seguir.

Embora o número de mulheres negras em cargos-chave de empresas venha crescendo, elas ainda são minoria e estão nas camadas mais baixas, e os contrastes são abismais. As empresas e o setor público estão preocupados com essa pauta?

O assunto vem despertando no mundo todo, especialmente na América, onde está o maior legado da escravidão. É um tema importante nos Estados Unidos e chega ao Brasil com certo atraso. O fosso, as oportunidades entre brancos e negros, é enorme, especialmente em relação às mulheres. Mas vejo uma mudança de mentalidade em empresas e governos, e temos visto oportunidades maiores para brasileiros que nunca tiveram a chance de se manifestar na plenitude de suas vocações e talentos.

Há quem diga que muitas das empresas e governos se preocupam com as “vitrines”, se esquecendo do restante.

Isso é verdade. Existe muita preocupação do ponto de vista de marketing. No passado se falava em responsabilidade social, depois veio a sustentabilidade. Hoje a diversidade se tornou o assunto do momento. Recebo muitos convites para palestras em empresas e órgãos públicos, que aparentemente estão preocupados com esse tema, mas às vezes tenho dificuldade de reconhecer se é uma atitude genuína ou estão indo na onda da opinião pública. Mas ainda assim eu acho que é um fator positivo. Mesmo que seja uma iniciativa de fachada, o assunto indica uma mudança.

Como vê a questão daqui a vinte anos?

Vai melhorar. Essa pauta é a mais importante na discussão da construção de um país democrático. É a primeira vez que vivemos a democracia mais alinhada, democracia esta de apenas quarenta anos. Não acredito que seja um mero modismo, que daqui a cinco anos falaremos de outro assunto. Ela vai ser permanente na agenda de empresas, igrejas, escolas, partidos. Se o Brasil quiser se tornar melhor, vai ter de enfrentar essa herança da escravidão, que tem a ver com o abismo entre o Brasil branco e o negro. Não tem jeito.

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Mas se há uma receita amplamente conhecida, por que ainda há esse abismo?

Porque depende de um pedaço do Brasil abrir mão de seus privilégios para a outra parte que não tem nada.Veja o Supremo Tribunal Federal sem nenhum ministro negro, por exemplo. Isso vai ter de mudar.

A Justiça decretou a prisão dos supostos mandantes do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. A questão racial influenciou de alguma forma na execução dos dois ou foi um crime político?

Não diria que Marielle foi morta apenas em função da cor da pele. Havia disputa política, de espaços. Mas o fato de ser negra é simbólico e não pode ser ignorado.

Independentemente do motivo, Marielle virou a principal bandeira do movimento negro no país?

Sim. Ela se tornou um símbolo, uma bandeira. A consequência do crime foi um despertar maior da questão racial. Isso precisa ser respeitado.

O jogador Vinicius Júnior também se tornou um símbolo da luta contra o racismo, mas na Espanha ele é uma voz solitária.

Ele se tornou um símbolo poderoso, ninguém pode ignorar. Mas também está claro que há inúmeros jogadores brasileiros que não se solidarizam, como se nada estivesse acontecendo. Mas o fato de existir a luta é sinal de que o tema se tornou importante.

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Como tem visto os episódios de discursos de ódio contra brasileiros em Portugal, onde o senhor está?

Eu percebo que em Portugal a escravidão é um não-assunto. Não diria que os portugueses são particularmente racistas, mas, quando se trata de estudar e discutir, eles ignoram totalmente. Lancei Escravidão por aqui, mas a venda foi modesta. A ferida da escravidão não está em Portugal, está no Brasil.

Tem acompanhado a atuação da polícia paulista no litoral, especificamente no Guarujá?

Foram 58 mortos em confrontos, a maioria negros. Interessante porque os mortos nos confrontos da polícia no Brasil são negros, mas dentro da polícia os mortos também são negros. É uma tragédia dos dois lados. Mas não dá para negar que exista um Estado brasileiro impune que persegue a população negra. A chance de um garoto negro sair para trabalhar e levar uma geral da PM é infinitamente maior do que a de um jovem branco.

Palavras como criado-mudo, meia-tigela e “nas coxas”, tidas como racistas, realmente são?

São, pois a linguagem espelha a nossa cultura, os nossos valores. Isso acontece de forma imperceptível. Uma vez uma amiga foi a Florianópolis fazer um show e no hotel serviram um bolo chamado “nega maluca”. Ela foi reclamar com o gerente e ele trocou o nome. Quando me contou, perguntei se ela não estaria exagerando, pois todo mundo sabe que a denominação era de uso comum. A resposta foi que não me incomodei porque sou branco. Para nós, brancos, pode parecer mimimi. Mas, se isso incomoda o negro, tem de ser levado em consideração.

Publicado em VEJA São Paulo de 5 de abril de 2024, edição nº 2887

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