Os projetos ambiciosos que estão mudando a cara do Jardim Anália Franco
Empresários jovens e influentes nas redes sociais fazem grandes investimentos apostando alto no bairro da Zona Leste
São negócios fora do comum — mas, como dizia a antiga propaganda, com alguma coisa em comum. Há uma megagravadora de funks (que lança até 1 000 músicas por mês), um luxuoso complexo gastronômico de 4 800 metros quadrados (foto ao lado) e a loja de carros superesportivos mais famosa do Instagram.
+ Novo complexo na Consolação terá escritórios, lofts e até shopping
Em comum, foram todos inaugurados recentemente no Jardim Anália Franco, um enclave de alta renda próximo ao Tatuapé, na Zona Leste. Os donos são jovens e alguns têm milhões de seguidores nas redes sociais. Além disso, estão unidos para fazer melhorias na região, como enterrar os fios ou instalar câmeras de segurança.
“Vamos juntar mais empresários e, com a força que temos no meio digital, pressionar por mudanças”, diz Tiago Fernandes, da concessionária TCar. Nos últimos doze meses, o preço médio do metro quadrado dos apartamentos residenciais do Anália Franco subiu 4,46%, segundo análise de Pedro Tenório, economista do DataZAP+, enquanto bairros como a Vila Olímpia, na Zona Oeste, viram o indicador cair.
O valor chegou a 8 247 reais, acima de regiões como o Morumbi, onde é de 7 580. “Na minha percepção, o Anália Franco é o lugar da cidade onde a renda mais cresce”, acredita Rafael Scodelário, que está construindo prédios no bairro.
Diferentemente do que acontece em regiões mais elitizadas, os empresários do Anália raramente receberam algum empurrão da família para abrir os negócios. Mais do que disso, alguns tiveram a juventude difícil e barra-pesada — veja os relatos surpreendentes abaixo.
O PARQUE DA GASTRONOMIA
Quando era adolescente, Guilherme Temperani, 35, ouviu um desaforo da mãe de uma namorada. Ao chegarem a uma pizzaria, a ex-sogra disse que o jovem não entenderia o cardápio porque “só comia feijão e arroz”. Obstinado, Guilherme criou um pequeno império gastronômico, que inclui uma das marcas de restaurante que mais vendem arroz e feijão — acompanhados de ingredientes da culinária nordestina — na cidade: o Macaxeira.
Hoje, apenas uma das sete unidades ainda pertence aos fundadores: a do Tatuapé, na Zona Leste (as outras se tornaram franquias). Em 2019, o empreendedor e três primos — sócios também no Macaxeira — abriram, no Jardim Anália Franco, o URU Mar y Parrilla, dedicado aos pratos uruguaios.
“Já temos 15 000 clientes por mês. Agora, vamos ajudar a enterrar a fiação do bairro.”
Em abril de 2022, inauguraram no mesmo bairro a mais ambiciosa empreitada do grupo: o Vila Anália (foto acima), um espaço de 4 800 metros quadrados com três restaurantes (italiano, francês e japonês), além de um bar de tapas, uma confeitaria e um empório. Já investiram 18 milhões no espaço. “É o maior complexo desse tipo na América Latina. Temos recebido em média 15 000 pessoas por mês”, afirma Guilherme.
+ A explosão do brunch em SP: conheça lugares especializados na refeição
Em setembro, passa a funcionar na cobertura o MII Rooftop, um bar-restaurante grego. No futuro espaço, duas coisas chamam atenção. A primeira é a sofisticação: os clientes poderão saborear lagostas grelhadas em meio a palmeiras trazidas do Uruguai (custaram 30 000 cada planta). A segunda, as numerosas varandas gourmets dos prédios de elevado padrão ao redor. “Nosso propósito é sofisticar o bairro. Queremos ajudar a bancar projetos como enterrar a fiação das ruas”, diz Guilherme. “Mas continuo amando arroz e feijão.”
Rua Cândido Lacerda, 33. @grupovilaanalia
A FÁBRICA DE FUNKS
Marcelo “Portuga”, 41, é talvez a principal mão por trás da viralização do funk no país nos últimos anos. Entre 2017 e maio passado, foi sócio de Konrad Dantas, o Kondzilla, mais conhecido produtor musical do gênero (capa da Vejinha em agosto de 2021). Após um rompimento pouco amigável, Portuga abriu uma imensa “fábrica de funks” na (meio difusa) fronteira entre o Tatuapé e o Anália Franco.
São 22 estúdios com cerca de quarenta DJs, que transformam as rimas dos funkeiros em música, muita música: a Portuga Records lança entre 600 e 1 000 funks por mês. “No primeiro dia de funcionamento, fizemos 72”, diz. Na ex-produtora, Portuga tinha participado diretamente da criação de sucessos estrondosos como MC Fioti e Kevinho. Após a cisão com o ex-sócio, levou esses artistas para o novo negócio, além de nomes como Jottapê, Tainá Costa e MC Lan — uma turma cujos vídeos alcançam centenas de milhões de visualizações.
“Ele me descobriu quando ninguém me conhecia”, diz o funkeiro Jottapê, estrela da série Sintonia, da Netflix. A empresa é responsável pelos shows, gravações e contratos publicitários de cerca de oitenta artistas. “A maioria é aqui da ZL”, diz o empresário. A Portuga Records também cria e compra canais de YouTube, formando uma rede que usa para divulgar as músicas. Já tem quinze canais, cujos vídeos somam 5 bilhões de visualizações.
“Estamos lançando de 600 a 1 000 músicas por mês. A maioria dos artistas é aqui da ZL.”
O novo bairro agradou ao empresário. “Aqui é ótimo, tem de tudo: bons restaurantes de várias culinárias, cervejarias bacanas”, ele diz. “Não pretendo ficar só no funk. Estamos entrando no samba e vamos lançar um selo gospel”, revela Portuga, um entusiasmado praticante da fé católica.
A ESTRELA DOS CARRÕES
Existem muitos artistas e atletas com milhões de seguidores no Instagram. Tiago Fernandes, 41, mais conhecido pelo apelido TCar, é um raríssimo caso de vendedor de carros nesse grupo. Não é o único sinal de notoriedade do empresário.
Além de ter 3 milhões de seguidores no perfil da loja (localizada entre o Anália Franco e o Tatuapé) na rede social, Tiago é homenageado por diversos funkeiros em letras de música e até na pele dos fãs. “Já recebi três clientes que tinham meu rosto tatuado”, ele conta. A fama do vendedor disparou na pandemia. “Percebi que estava todo mundo em casa e comecei a fazer conteúdo para as redes”, diz.
+Assine a Vejinha a partir de 9,90.
Os vídeos mostravam as Ferraris, Porsches e outros carrões que ele vende — o mais caro foi uma Ferrari 458 Spider de 3 milhões de reais. A clientela inclui jogadores (como Jô, Sheik, Rony e Arboleda) e funkeiros (Kevinho, MC Kekel, Salvador da Rima e outros). “A maioria dos funkeiros de sucesso mora na ZL, mas não tinha uma loja de luxo na região”, diz Tiago, enquanto exibe o espaço, de 1 000 metros quadrados, com telões, luzes especiais e modelos ultraesportivos pendurados nas paredes (foto acima).
“Comecei como lavador de carros. Hoje, só contrato quem também começou assim. É uma ideologia minha.”
O empresário entrou no mercado por baixo. “Fui lavador de carro por muitos anos. Minha mãe era faxineira e meu padrasto tinha problemas com drogas. Aos 16 anos, eu tinha morado em 21 casas diferentes”, ele conta. “Hoje, os cinco vendedores que tenho na loja — e todos faturam alto — também começaram como lavadores. Só contrato assim, é uma ideologia minha.”
Rua Serra de Bragança, 1212. @tcar
TOURO DE OURO NA ZL
Rafael Scodelario, 32, vende imóveis em áreas nobres de São Paulo — a imobiliária que fundou, o Grupo Escodelar, negociou recentemente uma cobertura na Rua José Maria Lisboa, nos Jardins, por 42 milhões de reais. “O corretor foi comemorar nas Maldivas”, ele conta.
No ano passado, ganhou notoriedade como um dos pais de uma ideia que gerou polêmica: o “touro de ouro” instalado — e logo removido — da frente da B3, no Centro. No momento, o foco do empresário mudou de CEP. Rafael reuniu investidores e, juntos, estão construindo dois prédios e compraram quatro terrenos no Anália Franco — os projetos levantaram 33 milhões de reais. “Lá, o que a gente coloca para vender, vende”, ele diz.
O preço das maiores unidades, com 96 metros quadrados, passou de 1 milhão de reais. “É a região onde a renda mais cresce na cidade”, acredita. No segundo semestre, Rafael vai abrir uma filial da imobiliária no bairro — as atuais ficam nos Jardins, em Santana, na Cantareira e em Orlando, nos EUA. “Será a maior e mais top da Zona Leste”, ele promete. “Vamos instalar uma réplica do touro de ouro no estacionamento.”
“Todos os investidores dos nossos projetos moram em bairros como os Jardins. Trouxemos o dinheiro deles para a ZL.”
Um dos prédios em obra (acima) tem vista para o Parque Ceret e deve ficar pronto no fim do ano que vem. Sem precisar montar um estande de vendas, o grupo fechou negócio em 90% das unidades. “As restantes, vamos segurar porque acreditamos que vão se valorizar ainda mais”, afirma Rafael.
“É um movimento econômico interessante: todos os investidores dos nossos projetos no Anália Franco moram nas áreas nobres tradicionais, como os Jardins ou o Itaim. De certa maneira, estamos trazendo o dinheiro desses lugares para a Zona Leste”, ele conclui.
O IMPÉRIO DOS DENTES BRANCOS
“Há dois anos não atuo como dentista, virei somente empresário. Na verdade, no mês passado atendi toda a família do Neymar”, conta Roberto Viotto, 45, o dentista-empresário-influenciador (tem quase 1 milhão de seguidores no Instagram) responsável por disseminar as “lentes de contato dentárias” entre jogadores, artistas e celebridades do país — aquelas capinhas que deixam os sorrisos ultrabrancos.
Dono de um império que fatura milhões ao mês, Viotto entrou na faculdade de odontologia somente aos 28 anos, após uma juventude conturbada. Criado no Jardim Peri, na Zona Norte, ele se envolveu com drogas na adolescência. “Aos 15 anos, me chamaram para fazer um assalto. Cheguei a ir ao local e, na hora, desisti. Na mesma semana, tive uma overdose de cocaína”, conta.
+ Justiça decide que Círculo Militar deve deixar terreno da prefeitura
Recuperado após uma temporada no Japão, Viotto se tornou popular em 2011, após fazer um clareamento na ex-panicat Juju Salimeni. “Ela postou nossa foto e me mostrou o Instagram. Comecei a fazer permutas com celebridades para divulgar meu trabalho”, ele relembra.
“Tive uma overdose e quase participei de um assalto. Hoje, minha principal clínica rende 3,75 milhões por mês.”
Em 2013, Viotto descobriu as tais lentes de contato. “Elas eram usadas para cobrir um único dente. Decidi fazer baterias de dez ou vinte dentes. Virou febre”, relembra. Sua principal clínica, no Itaim, coloca 1 500 lentes por mês, ao custo de 2 500 reais cada uma (total de 3,75 milhões).
Tem filiais no Rio e em BH. Em 2021, abriu um centro de formação no Anália Franco, onde ensina a técnica, por 40 000 reais o curso. “Já formei oitenta alunos. Eles vão abrir clínicas com o ‘selo Viotto’ e, depois, comprar lentes fornecidas por mim”, explica.
+Assine a Vejinha a partir de 9,90.
Publicado em VEJA São Paulo de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801