“Fluxo” de Paraisópolis: abuso policial e festa sem regra
Uma das poucas opções de lazer na região, baile funk movimenta comércio local, mas também gera reclamação de moradores
A desastrada ação policial de 1º de dezembro, que acabou com a morte de nove pessoas pisoteadas durante um baile funk em Paraisópolis, trouxe à luz uma onda de versões. De um lado, a Polícia Militar afirma ter perseguido dois motoqueiros que entraram atirando na favela, provocando corre-corre. Já para os moradores, a ação foi premeditada, com o objetivo de fechar os dois principais acessos ao baile, o que levou as pessoas a se espremer por vielas estreitas.
As queixas de abuso por parte da polícia aumentaram nos últimos dois meses, após a morte de um PM numa operação. “Eles mandam as pessoas entrar nos bares, fecham a porta de ferro e jogam bomba de gás lá dentro”, conta um comerciante que pede anonimato. Há ainda vídeos que mostram policiais agredindo jovens rendidos. As ações em Paraisópolis estão sendo investigadas pela Polícia Civil (para apurar a responsabilidade pelas mortes) e pela PM (que vai averiguar as condutas de atuação e de comportamento dos agentes).
Pelo Twitter, após a divulgação de novos vídeos, na terça (3), o governador João Doria disse que condena a violência. “Exigi punição exemplar ao agressor, já afastado de suas funções.” No dia anterior, o tucano havia afirmado que a política de combate aos pancadões continuaria a ser executada. Em nota, a PM afirma que realizou neste ano 7 597 operações contra esse tipo de festa no estado, com 1 275 prisões e 1 700 toneladas de drogas apreendidas.
“Se o baile é uma realidade, que os governantes encontrem alternativas de segurança para que as pessoas possam vir aqui e voltar para casa sem problemas”, diz Gilson Rodrigues, a principal liderança de Paraisópolis. A festa lá, assim como em outros pontos da cidade (no dia das mortes havia cerca de 250 pancadões na metrópole), consiste em uma aglomeração de jovens em que a música alta vem de diversas caixas de som portáteis e alto-falantes instalados em veículos equipados com luz de neon. Os “paredões” — nome das caixas potentes e sobrepostas que chegam a quase Rua 3 metros de altura — fazem sucesso. O aluguel de um de 30 000 watts (como comparação, uma caixinha de som potente, com Bluetooth, tem 150 watts) sai por cerca de 3 000 reais por noite.
Especialistas em segurança pública apontam uma falta de planejamento do estado no momento de dispersar o “fluxo”, nome que os jovens dão à festa que fecha ruas sem autorização e causa transtorno pelo barulho. “A polícia deve ser orientada primeiro para proteger o cidadão e depois para pegar criminosos. Se toda vez, para pegar um bandido, se coloca em risco a sociedade, tal ação merece uma grande reflexão”, afirma o tenente-coronel aposentado Diógenes Lucca, que cita o Método Giraldi, da PM paulista, cujos protocolos são reconhecidos internacionalmente e preveem, entre outras medidas, o uso progressivo da força. “É preciso abusar das precauções mínimas antes de fazer um ‘arrastão’. Em pânico, muitas pessoas adotam ações irracionais.”
Bruno Ramos, representante nacional do Movimento Funk, considera que a falta de ações estatais é o grande problema. “O ‘fluxo’ é a ausência de políticas públicas. Sem equipamentos de lazer dentro das quebradas, a molecada reivindica seu direito de ocupar as ruas”, opina ele.
O público, que chega fácil à marca de 20 000 pessoas em um único dia, consome bebidas alcoólicas e drogas. As preferidas são maconha, cocaína (vendida nas biqueiras em pinos a 20 reais cada um) e lança-perfume, inalado em garrafas de plástico ou em latas de cerveja — nada muito diferente do que se consome em raves e baladas da classe média. Ali em Paraisópolis cada um aparece do jeito que dá: de carro, de moto, em ônibus que saem abarrotados de terminais como Pinheiros e Campo Limpo. As turmas usam grandes e coloridos guarda-chuvas, que ostentam marcas importadas e servem como ponto de encontro caso alguém se perca.
Para voltar para casa, quem não tem meios próprios utiliza ônibus que passam pela Avenida Giovanni Gronchi, atrapalhando a vida de quem acorda cedo para trabalhar. “Quando o motorista vê aquela ‘manada’, não quer levar ninguém, pois o pessoal entra pela janela, urina dentro dos veículos”, diz uma moradora de Paraisópolis que pediu para não ser identificada. Nesses dias, ela precisa andar mais de 3 quilômetros para conseguir entrar em um ônibus vazio. “Sem falar que na noite anterior ninguém dormiu por causa da bagunça.”
A presença de tanta gente ávida por consumir é um prato cheio para quem pensa em faturar e movimenta a economia local. Morador de Paraisópolis, o desempregado Felipe Silva, 34, trabalha como ambulante nas festas e lucra 1 000 reais por dia. As bebidas que mais saem são a dose de uísque com água de coco congelada (20 reais) e a catuaba (15 reais a garrafa). Com duas estruturas montadas em pontos diferentes do “fluxo”, o empresário Raul Barros, 26, é dono da marca DZ7.
Durante o dia, os espaços, de cerca de 30 metros quadrados, funcionam como uma barbearia descolada. À noite, saem as máquinas e tesouras e entram os “paredões” instalados na porta, além das bebidas vendidas para o pessoal consumir ali ou no meio da rua. Barros vai abrir um terceiro ponto, o Club 17 Premium Lounge, onde investiu 120 000 reais. Com 130 metros quadrados, o local conta com mezanino e camarote. “Vou obter a documentação na prefeitura e transformar o lugar em uma extensão da Vila Olímpia”, planeja.
Outro que tem forte ligação com os bailes é o fotojornalista Jeferson Delgado, 21, nascido e criado no Jardim Rosana, região do Capão Redondo. Ele começou a ir aos “fluxos” perto de casa aos 14 anos e hoje registra os encontros de funk por toda a cidade, como o Baile da Marcone e o Fluxo 12 do Cinga, na Zona Norte, e o Baile do Pantanal, na Zona Leste. “Meu trampo é retratar o funk como cultura”, diz o jovem. A frequência precoce de meninos e meninas às festas é motivo de atenção dos pais. Mãe de um jovem de 20 anos, a produtora Renata Alves sofre as dores da preocupação e muitas vezes desconhece o paradeiro do filho, morador de Paraisópolis. “A gente não sabe se eles serão hostilizados pela polícia. Ao mesmo tempo, é o que eles têm para se divertir”, pondera sobre a falta de opções de lazer.
Com apenas um campo de futebol para os mais de 100 000 moradores, Paraisópolis luta há dez anos pela concretização de um parque, criado por lei em 2008 mas que nunca saiu do papel. O espaço, de 65 000 metros quadrados, é preservado por abrigar espécies da Mata Atlântica. Poderia receber trilhas, tanque de areia e parquinho infantil. “Seria um equipamento inédito e com opções saudáveis de lazer”, afirma a arquiteta Isabel Affonso, membro da Comissão Pró-Parque Paraisópolis. O local faz parte do Plano de Metas da prefeitura, que promete a construção para 2020.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 11 de dezembro de 2019, edição nº 2664.